quinta-feira, 29 de maio de 2014

As mil e uma utilidades dos precatórios (nenhuma decente)



O vandalismo, um tema que está em voga ultimamente, costuma produzir nas pessoas uma imediata repulsa, uma vez que perpassa por toda a sociedade em geral a ideia consolidada de um utilitarismo rasteiro. De fato, a destruição de um bem (público ou privado) de forma imotivada (para o bem ou para o mal) causa imediata repulsa. Por que destruir um bem sem uma justificativa, ou apenas pelo prazer de destruir?
Mas existem outras formas de vandalismo, assim como uma possível graduação. Por exemplo, um cidadão compra fios de eletricidade no valor de 10 mil reais. Vem o ladrão e furta estes fios, em seguida queima os mesmos e se dirige ao ferro-velho e vende um monte de arame de cobre por irrisórios 40 reais. Evidentemente que houve uma motivação do ladrão, mas esta está desproporcional ao dano que causa ao transformar um bem no valor de 10 mil em 40 irrisórios reais.
Assim como o exemplo acima, existe no Brasil um imenso processo de vandalismo que vem se perpetuando anos a fio e que é levado a cabo pelo poder público, incluindo-se neste fazer, as três esferas de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) que se não se mostram tão autônomas, certamente são harmônicas quando se trata de oferecer privilégios e impunidades aos olimpianos do país. Este vandalismo (existem outros, of course!) ganhou o nome jurídico de precatório e o apelido popular de calote.
O roubo da coisa pública é um câncer maligno que cresce a cada dia, e isto tem como principal fato propulsor as garantias jurídicas de impunidade que diuturnamente tomamos conhecimento, e tendem a crescer exponencialmente na mesma medida em que as elites dirigentes vão perdendo credibilidade e desmoralizando o poder do Estado.
O roubo corriqueiro da coisa pública, normalmente pode ser “justificado” consoante os roubos em geral, ou seja, o ladrão se apossa do valor integral do furto (normalmente os membros da quadrilha, pois não se rouba o Erário sozinho). Os ladrões que roubam 1 bilhão da previdência, se apossam de 1 bilhão e a sociedade (principalmente os mais necessitados) fica com menos 1 bilhão. Sem entrar nos méritos das perversidades sociais, quando uma quadrilha rouba 500 milhões da Saúde, ela se apodera de 500 milhões e a sociedade perde os mesmos 500 milhões. Evidentemente que nestas contas existem outros fatores não contábeis a se observar, sendo o mais evidente, o desgaste na confiança da sociedade face aos entes públicos.
Entretanto, a mesma conta dos dois exemplos acima, não serve no caso dos precatórios, pois que, neste caso, adentramos num vandalismo, que aprofunda e perpetua os efeitos nefastos do furto original.
A história (nojenta) dos precatórios do país está a merecer uma reflexão profunda e uma auditoria externa.
Como tudo no país, as espertezas, os privilégios e as maracutais têm como ponto de partida uma lógica aparentemente razoável. Não faz muito tempo, os nossos gloriosos vereadores não recebiam nenhum centavo para o desempenho das suas funções que eram (e continuam sendo) um desempenho cívico e não uma profissão. Aos poucos surge um raciocínio de que o vereador, para o desempenho da vereança, deveria ser ressarcido de gastos com a sua função. Parece razoável e (inicialmente) se estabelece uma merreca mensal. À medida que este valor simbólico ganha legitimidade, se dá uma escalada nestes valores e vereadores de cidades miseráveis recebem estipêndios acima de 10 mil reais, acrescidos de mordomias e alguns cargos de confiança. Um olhar para a história (recente) nos informa que um desempenho antes gratuito/cívico se transformou num valor acima de 20 ou 30 mil reais ao mês. Não mais se está discutindo se vereadores têm ou não direito a pagamento, mas sim o quantum. Esvazia-se a história e se elege o fato consumado como único parâmetro a ser levado em conta.
A mesma coisa aconteceu com os precatórios no Brasil Republicano. O princípio basilar da segurança jurídica repousa no bordão de que não se discute a coisa transitada em julgado, cumpre-se. Então, como se faz possível o Estado (guardião e aplicador das leis que ele mesmo produz) burlar este princípio? Elementar, meu caro Lewandovski: utilizando-se um raciocínio razoavelmente lógico (que nenhum país civilizado ousou parir) de que a máquina administrativa necessita de um tempo hábil para efetuar os pagamentos dos precatórios. Necessita prever estes recursos em orçamentos, etc. E assim, dentro desta razoabilidade canhestra, se fez: paga no ano seguinte.
Como sempre, após o cachimbo entortar a boca, ou seja, após o tempo em que este dispositivo ganha legitimidade, pode-se alargar indefinidamente este prazo, pois que não mais se está preso ao raciocínio original (com alguma razoabilidade), mas, sim, ao fato de que o prazo legal de míseros 12meses pode ser alargado para 10 / 15 / 20 ou mesmo 50 anos. Qual o problema? Não mais estamos falando de cumprir uma sentença transitada em julgado, mas, sim, de uma lei que estipula um prazo para o pagamento. Muita cara de pau desses caras, né não?
Dessa mixórdia jurídico/legislativa, a resultante é que os Entes Públicos (Executivo) deixaram de honrar os pagamentos sob o beneplácito e leniência do Judiciário e incrementado por leis (Legislativo) que culminaram com a PEC do Calote, que estabelecia 15 anos para o pagamento dos precatórios. Tal descalabro resultou num acúmulo de uma dívida estimada (por baixo) em 94,3 bilhões de reais.
O pior desta história macabra (e sempre pode ser pior) é que, não existe apenas esta dívida a sair dos cofres públicos. Existem (e aí entra o conceito de Vandalismo Estatal) os bilhões que foram roubados dos cofres públicos em função desta formatação pátria de precatórios (e ninguém foi pra cadeia!) e dos bilhões que continuam sendo roubados, ad eternum. Só pra se ter uma ideia da coisa, recentemente foi noticiado que o TJ da Bahia, comandado por uns desembargadores jabarandaias surrupiaram 1 bilhão de reais. Olhando a nossa realidade, tudo indica que esse pessoal consegue roubar um bilhão (ou 2 ou 10) do dinheiro público com mais facilidade (e impunidade) do que um pobre faminto tem para afanar banana em final de feira.
Ainda, no campo dos valores econômicos, devemos adicionar os custos (judiciais e administrativos) que se tem (dinheiro público) para gerir o monstrengo “precatorial”.
Essa história pode ser pior? Claro, meu caro Barbosa! Além dos danos materiais ao erário público, que já pagou esta conta uma vez ou duas (aos ladrões que a surrupiaram) e que terá que efetuar este pagamento legitimamente, devemos contabilizar prejuízos não econômicos, mas que são mais importantes que os valores monetários. São os danos morais que os responsáveis pela coisa pública impingiram (ativa ou passivamente) ao povo brasileiro.
O primeiro dano é que o Estado se afastou de uma premissa de que o Judiciário é o principal instrumento para diminuir as tensões sociais. A existência e permanência de inúmeras ações (sobre precatórios) desnecessárias, certamente não minimizam as tensões, mas, ao contrário, as agudizam.
Transformou o cumprimento das sentenças numa questão lotérica (prosaica), numa roleta judiciária de sorte ou azar. As sentenças e os objetos são idênticos, entretanto, se o precatório do sortudo cidadão for do Estado do Rio de Janeiro, ele recebeu (mesmo um precatório recente), ao passo que se o indigitado precatório for do Município de Teresópolis, o azarado cidadão não sabe quando receberá (mesmo precatórios antigos). Nesta altura do campeonato, tem muito gaúcho maldizendo a sina azarada de não ter nascido carioca. Os doutores jurisconsultos que gostam de nomear tudo, deveriam criar um conceito para isso (e aí, ganha foros de legitimidade), no meu modesto entender trata-se de mixórdia jurídica ou simplesmente esculhambação.
Os interesses dos poderosos no entorno dos precatórios forçou o STF a firmar jurisprudência absurda (contra o texto Constitucional) sobre as possíveis punições aos executivos inadimplentes.
Os interesses dos poderosos no entorno dos precatórios forçou o STF a firmar jurisprudência absurda (contra o texto Constitucional) sobre as prioridades de pagamento dos precatórios tidos como alimentares, atropelando inclusive os tratados internacionais, tão fundamentais para o M. D. Ministro Celso de Mello na hora de defender os embargos infringentes que retiraram os mensaleiros da frigideira. O Ministro afirmou fundamental e intransigente reconhecimento da competência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação daquela Convenção.
Os interesses dos poderosos no entorno dos precatórios vem forçando o STF a adiar reiteradamente a votação da modulação proposta pelo M. D. Ministro Luiz Fux.
O precatório no Brasil tem uma história horripilante de desobediência sistemática à lei, de inúmeras maracutaias (legais e ilegais), de malversação do dinheiro público, de escândalos de calibres variados, de leniência e mesmo conivência do Judiciário, de descompromisso da classe política para com a cidadania e os direitos fundamentais da pessoa humana.
Se a estrutura atual do sistema de precatórios interessa apenas aos ladrões da coisa pública (contados aos milhares), como explicar a sua existência e permanência se isto tortura e retira a cidadania de legítimos portadores de direitos adquiridos (contados aos milhões) e só causa vicissitudes à correta condução da coisa pública?
Se os precatórios (conduzidos de forma malandra) não produzem nenhum bem social e são uma eterna fonte de produção de problemas (econômicos, legais e sociais), como explicar a sua persistente existência na vida pública dos brasileiros?
Será que estes poucos aproveitadores são tão importantes, a ponto confrontar a sociedade como um todo e impor uma excrescência danosa ao povo e às instituições, apenas para manter mais um nicho de privilégios e roubalheiras?
Marcelo Cavalcante