terça-feira, 30 de junho de 2015

UM SOUZA NADA PRUDENTE

UM SOUZA NADA PRUDENTE
Marcelo Cavalcante

São tantas as mazelas no país que construímos um estoque inesgotável de malfeitos e malsinados. Tudo no lombo do povão.
O caso da vez nos foi apresentado pelo programa Fantástico, que resolveu escarafunchar a questão dos imóveis funcionais. Ficamos sabendo que ex-funcionários públicos continuam, por anos a fio, usando as residências públicas após deixarem o serviço público.
Concordo que é mais uma esculhambação made in Brazil.
O diacho dessa história, o que me chamou mais a atenção, foi a frase lapidar, digna de Alice no País das Maravilhas, proferida pelo desembargador federal Souza Prudente que afirmou “Um processo como este, em que alguém fica vários anos abusando de um bem imóvel da União, enfim, pagando uma ninharia, uma taxa irrisória por ocupar um próprio nacional, é um processo injusto. Já pelo tempo, pela demora em sua solução, ele se torna injusto”.
Aparentemente a autoridade pátria afirmou o óbvio, mas só aparentemente. Em verdade, o que o desembargador fez foi contrariar o seu sobrenome, ao enviesar por uma senda do discurso ideológico, no qual os fatos são a-históricos. Neste caso, o nosso valente defensor do bem público (os apartamentos funcionais), em que pese a sua correção no proceder, entende o problema como se o único a atormentar a vida brasilis. Aparta a questão da justiça da sociedade em geral.
Contextualizando a afirmação do senhor desembargador dentro da realidade do país, chegamos à conclusão de que quase todos os processos existentes no país são injustos, pois, em sua esmagadora maioria, são extremamente demorados.
Será que o eminente Souza Prudente desconhece a realidade do nosso Judiciário? Será que ele não tem ciência de que, por exemplo, no caso dos precatórios, por ações do poder público e pressão de interesses escusos, o pagamento de ações já transitadas em julgado foi jogado para as calendas?
Pois é: no Brasil, o discurso da moralidade é fatiado e só faz eco aonde o calo aperta. Dessa forma, o que serve para a demora judicial no problema (pontual) dos apartamentos funcionais, não serve para o restante dos demais processos. Isso deixa a impressão de que, se resolvermos esse imbróglio residencial da corte brasiliense, o país entra nos eixos e rumaremos céleres ao primeiro mundo.

Acordem Alices!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Ivinho - Uma estrada?

Ivinho - 
Uma estrada?

Conheci Ivson Wanderley Pessoa por artes de sua prima, Marilena, que é minha prima emprestada. Por ironia, também através dela (no facebook da vida) tomo conhecimento do seu falecimento. Será?
O meu primeiro contato com este gênio musical foi através de sons, mais precisamente da sua viola de doze cordas que produzia, através de seus dedos mágicos, uma música indecifrável, universal. A impressão que tive foi a de que estavam lá na minha sala uns três ou quatro virtuoses em instrumentos de cordas. Presentes naquela música de improviso, estavam a viola, o violão, o baixo, o bandolim... Qual surpresa ao me deparar com aquele cabra solitário, na minha poltrona, executando um trivial (para ele) exercício de aquecimento.
Com o tempo descobri que ele conseguia desenvolver por horas a fio, sem interrupções, aqueles improvisos, que eram músicas maravilhosas que nunca se deu ao trabalho de registrar, relembrar, gravar. Acredito que em vida, por este processo, compôs mais de um milheiro de músicas que vagam por aí, em algum lugar entre o átomo e o universo.
Relembro com intensa admiração e mesmo nostalgia, as músicas que ele e o Geraldinho tocaram no casamento da prima, a Marilena, ali na igreja do Palácio Guanabara. Os dois se entrincheiraram no mezanino da capela e tocaram improvisos intermináveis, de beleza única.
Eu, que tinha fumaças de ser compositor, desde o primeiro acorde que escutei daquela viola, me recobri de pequeneza e da certeza de que aquele jovem – já um tanto gordinho, cabeludo e meio ausente – tinha o dom e o talento que o habilitavam a transpor limites e realizar coisas que, além de únicas, eram verdadeiramente obras artísticas irretocáveis. Esta mesma impressão (convicção) tiveram uns turistas que, ao escutarem seus improvisos numa escada do Hotel Nacional, o convidaram a participar do Festival de Montreux, que na época era o mais importante e prestigiado palco musical do mundo.
Com exceção de “Sob o sol de satã”, as músicas dele que coloquei letra, foram as que consegui capturar ao acaso. Ele tocava, tocava e tocava de forma ensandecida, improvisos improváveis. Tinha vez que eu fazia com que ele parasse e repetisse determinada passagem. Colocava uma letra e o fazia repetir, até memorizar. O sucesso de Montreux e o subsequente disco fizeram com que ele ganhasse outros rumos, enveredasse por novas experiências.
Foi que vindo para o Rio de Janeiro, acompanhando Alceu Valença, para participar do Festival Abertura (da Globo), onde apresentaram “Vou danado pra Catende”, ele resolveu ficar neste sulmaravilha. Para tanto, buscou trabalhar como músico de estúdio, fato que apresentava algumas dificuldades. Entre elas, duas especiais: uma o fato de ser canhoto e a outra não ter um violão. A maioria das músicas requer violão, ao passo que viola de 12 cordas é mais raro. Violão emprestado, inverter as cordas do mesmo... Foi com extrema alegria que lhe dei o meu Di Giorgio recém-comprado, uma vez que me alegrava saber que seria usado por um músico de verdade, coisa que eu, por mais que aprendesse e exercitasse, não chegaria aos pés (ou às mãos, dedos).
Muitos anos passados e nos reencontramos com a ideia de gravarmos um disco com as nossas músicas, disco no qual ele colocaria a sua voz nordestina e rascante nas suas músicas e minhas modestas letras. Nos poucos dias em que ficamos juntos, fizemos uma demo e abortamos a entrada em estúdio por impossibilidades incontornáveis.
No plano da matéria é fácil e lógico acreditar que o Ivinho morreu e foi sepultado. Mera constatação de que não mais vai carregar o pesado fardo de ser Ivinho, de ter existido conforme os desideratos que o destino lhe reservou. Alguns poucos choram a sua ausência, pois que de poucos parentes e raros amigos. Alguns noticiosos pernambucanos noticiam...

O que sei, como um absoluto, é que o talento e a sua virtuose musical permanecerão em minhas lembranças que pretendo eternas. Em algum lugar (faz tempo) afirmei que apenas um acorde do Ivinha era mais importante, para a nossa cultura, do que toda a discografia do Roberto Carlos, apesar do sucesso e da fortuna que um e outro alcançaram em função de suas trajetórias mundanas. A única e fundamental diferença entre Ivinho e outros celebrados músicos reside no fato de que ele nunca se organizou para registrar, civil ou cartorialmente, as suas criações geniais. Mai aí, acredito, já era pedir demais.