Vivemos tempos
ensandecidos, onde pululam pensamentos e discursos nada razoáveis. Convencer
uma população bestializada, analfabeta e sem cidadania de que algumas mentiras
representam a verdade verdadeira é tarefa de fácil elaboração e execução,
principalmente quando se tem à disposição poderes e verbas quase que
inesgotáveis. Convencer a maioria do povo de que Lula é um cidadão de vida
despojada, um brasileiro comum ou que os governos do PT priorizaram os mais
pobres não requer maiores malabarismos de criatividade mesmo para marqueteiros
medíocres e de pouco talento estético-cultural. Mesmo porque o marketing,
grosso modo, é a antítese da arte, a negação da criatividade verdadeiramente
libertadora, pois que tem por finalidade o engodo que objetiva o aprisionar as
suas vítimas.
Sinceramente eu entendo as
ações (mesmo as injustificadas moralmente) dos chamados mortadelas, um bando de
manipulados através de cargos no governo ou simplesmente das migalhas
distribuídas nas manifestações públicas, tipo um desarrazoado e patético “não
vai ter golpe”. Pelo avesso, também com sinceridade, não consigo entender
(muito menos justificar) a postura de pessoas que têm discernimento de sobra
para olhar a realidade e ver que está exercitando o cinismo cívico ao fingirem
enxergar uma realidade que não existe, que nem dúbia é.
Pego como exemplo, não por
acaso, mas pelo grau de exposição nessa lide tragicômica, a figura de Chico
Buarque, dentre tantos outros que podem se assemelhar, para tecer algumas
considerações de cunho analítico-prospectivo. A verdade é que o Chico é o maior
compositor popular nascido neste país. Apesar de ter criado canções
extremamente elaboradas e abordado temas de difícil curso, conseguiu seduzir o
seu povo, com formação deficiente, de uma forma avassaladora e merecida.
Talento, sensibilidade e bagagem cultural. Não há marketing que consiga
transformar em sucesso uma letra que ousa usar a palavra escafandrista!
Acusações maldosas,
resultantes de compreensível indignação, especulam que a sua solidariedade ao
PT e ao Lula, existe em função de vantagens auferidas junto aos governos
petistas. Filho de classe média alta ganhou dinheiro suficiente para levar uma
velhice confortável e ainda goza de prestígio que lhe possibilita ganhar outro
tanto. Heloísa tem todos os méritos para ser Ministra da Cultura no Brasil ou
na França e se aqui o foi, são circunstâncias que desconheço e não tenho porque
colocar em dúvida o processo que a conduziu a tal cargo. A Lei Rouanet é um
balcão de atendimento caótico, no qual, como tudo no país, sempre tende a
resolver as opções pelo lado mais fácil e óbvio: prioridade aos mais famosos,
mesmo não necessitados.
Chico, por toda a sua vida
adulta esteve exposto ao público e, apesar de manter discreta privacidade, foi
alvo preferencial da mídia. Por todo este tempo nunca demonstrou nenhum desvio
de caráter e sempre manteve uma postura sincera, mesmo descontentando alguns.
Nunca se mostrou gratuito.
Diante do acima analisado,
por razoável, não há como enquadrar Chico Buarque como um lobotizado mortadela
ou um reles aproveitador das tetas de governo ou, ainda, um porralouca
ideológico. Não faria sentido, já que estamos observando a realidade o mais
aproximado do que ela é. Há que se observar e reconhecer que, ao longo da vida,
ele foi, por várias vezes, tentado a aderir (existem formas discretas), em
troca de enormes facilidades e não o fez.
Então, qual mistério, qual
razão para nos depararmos com este artista singular defendendo publicamente um
governo sabidamente corrupto e um líder a meio caminho da prisão por crimes de
variados calibres? Os méritos pessoais do Chico são muitos, sempre foi exigente
com suas obras, coerente com suas ideias e meticuloso no detectar e expor os
maiores e menores erros de um regime antidemocrático por definição e
autoritário por natureza. É neste ponto que a minha perplexidade se agudiza.
Como este exímio especialista não farejaria a negociata rasteira, a esperteza
covarde e a flagrante traição ideológica levada a cabo pelo Partido dos
Trabalhadores? O que o leva a acreditar num golpe da direita contra um partido
de esquerda no poder? Me estarrece acreditar que Chico Buarque crê (e acredito
que assim o é) que o PT é um partido de esquerda realmente, nas suas práticas
de governo. O PT ensaiou tais aleivosias antes de assumir o poder e logo em
seguida mergulhou na amorfia partidária reinante, de direita, corrupta e
insensível. Os fatos demonstram que em treze anos de exercício do poder, o PT
nada mais fez do que dar continuidade à política neoliberal, acrescentando
apenas um ostensivo aparelhamento do Estado. Em treze anos de poder jamais
apresentou um projeto (nem de esquerda ou reformista que fosse) próprio para o
país e viveu de ensaios erráticos e de improvisações nas quais predominavam
objetivos eleitoreiros. Como agravante, aprofundou e sistematizou a corrupção
institucionalizando o crime enquanto política de Estado.
Sabemos que a nossa elite
não enxerga o povo do país senão enquanto massa de manobra, bois a caminho do
matadouro. Assim continuou nos governos do PT e as ações sociais não mantinham
preocupações socais, mas sim com o aumento do cacife eleitoral traduzido em
votos. As verbas usadas nestes programas sempre foram imensamente inferiores às
destinadas aos banqueiros e aos “empreendedores” ricos e amigos.
Conheci muitos artistas e
pretensos artistas que nada mais aspiravam da vida além de uma carreira de
sucessos, o que implicava em muito dinheiro e vida mansa. Nunca foi o caso do
Chico, que sempre demonstrou sincera preocupação com os rumos deste país e os
que duvidam atentem para o fato de que a sua obra é um eterno e obsessivo
recontar da vida do povo. Ele emprestou a sua fala aos silenciados (não só aos
exilados políticos), aos excluídos e aos simples de coração.
Prefiro acreditar, com
alguma razoabilidade, que ele foi tragado pelos seus desejos e estes lhe
suplantaram a racionalidade. Creio que ele observa o PT ainda como aquele
partido combativo, heroico, intransigente em eterna pugna por justiça social.
Nega-se a acreditar que a última oportunidade estiolou-se diante das opções
burguesas de líderes que prezavam mais o consumo conspícuo do que o cheiro do
povo, que sempre exala suor e sangue, êxtase e agonia.
O horror maior pode estar
por vir em breve, e os seus desejos frustrados se transformem em pesadelo, caso
sejam comprovados os crimes hoje investigados. O nefando bafo da perversão de
se saber instrumento que forneceu sobrevida a estas lideranças que a
aproveitaram para obstar ou inibir a descoberta de crimes perpetrados contra o
povo, usando exatamente a força que a cidadania confere aos seus mandatários.
Para alguém honesto, não concebo panorama pior.