segunda-feira, 13 de maio de 2013

"ARREMEDOS" in - Sombras



ARREMEDOS

Já fui jovem, tive meus sonhos,
minhas manias (no muito inofensivas)
que voaram nas asas da realidade.

Tive meus castelos, meus reinos,
minhas riquezas (ouro, púrpura, diamantes)
e as desfiz num jogo de cotidiano áspero.

Tive eternas férias, livros raros,
mestres lúcidos, sábios amigos e leais
que a boca da distância engoliu.

Criei meus amores, minhas rusgas,
minha ideologias, meus mitos íntimos
que se perderam na roda da sorte bêbada.

Que riso é este?
Eu digo: é o meu corpo jogado
neste desespero de vida
que mais parece
arremedo e arreganho.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

"FRONTEIRA DO IRREAL" -In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante


FRONTEIRA DO IRREAL



O descortinar do dia é neblinoso por sobre os contornos acidentados da Zona da Mata mineira, como a reafirmar a perene gravidez da natureza por toda a região.
Obediente ao ritmo progressista de muito trabalhar, aliado ao capricho metódico dos donos, a fazenda Miraflores é de uma limpeza e organização exemplares, em todos os seus desdobramentos e minúcias. O lugar expõe uma aura de mansa tranquilidade apesar da intensa e profícua faina.
Ex-funcionário de banco, Augusto Matos, ao ver a fortuna lhe sorrir em forma de sorte grande em loteria governamental, aproveitou a oportunidade do falecimento do velho Elias Alves, e adquiriu vantajosamente a fazenda aos herdeiros, todos moradores em metrópoles.
Deu-se aí, a grande transformação de Miraflores que, no transcurso de quatro anos, reformou-se completamente, ganhando ares modernos e tornando-se atividade rendosa.
Homem prático, com instintos de quase usurário, portanto isento de dúvidas ou crises existenciais, Augusto Matos não poderia nem pretendia justificar ao seu íntimo, aquela reviravolta que o andava a influenciar, ligando-o a histórias do tempo do ronca. De positivismo crônico, adquirido em cepa camponesa e solidificado nas lutas pela subsistência, era o produto acabado do que os sociólogos e intelectuais convencionaram chamar de pragmatismo.
Sete anos de casado com Débora dos Anjos e amealhara conquistas e sucessos merecidos além, é claro, do casal de filhos ambos saudáveis e irrequietos.
De forma desusada, macambúzio, Augusto Matos percorre a manhã, a cumprir funções cotidianas. Irrequieto, pensativo e cismarento, tenta decifrar o enigma que o molesta. Afogado em dúvidas tenta um jogo lógico, na esperança de separar o sonho da realidade.
A noite anterior, em seu desenrolar de reinações, sufoca-o em imprecisa angústia.
A coriza não justifica o resfriado nem o abatimento que lhe invade a alma. Inquieto, atenta aos contornos das sombras nunca antes observados.
Com não menor ansiedade, observa a casa típica de fazenda, espaçosa e confortável, apesar do estilo rústico duvidoso, como a esquadrinhar o montante de dúvidas e inseguranças.
De forma atípico, fica a remoer e bem comprovar a insensatez de suas resoluções.
Toda a estranheza tivera início na noite anterior. Noite clara. A lua buchuda o encontrou na sala a coordenar idéias de prosperidade e melhorias a empreender nos pastos mais distanciados. Num tempo impreciso, escutou (ou julgou escutar) nitidamente uma voz no quarto das crianças. Voz estranha, rascante, de homem, com acentuado tom gutural. Tenso, dirigiu-se ao quarto dos filhos e os foi encontrar brincando normalmente.
Cismado, retornou à sala.
Entre comentários sobre mesquinharias do cotidiano, recusou o café oferecido pela esposa e recurvou-se sobre papéis abarrotados de planos.
No ventre da noite impúbere, Augusto serpenteou por sono agitado. Uma espécie de pesadelo em que tentou desesperada e inutilmente despertar. Renhir de vontades e o despertar brusco, estonteante.
Observou o quarto em derredor e inquiriu vibrações febris e ouviu vozes indefinidas, inidentificáveis, que não adivinhou a procedência.
Controlando-se, rebuscou forças e coragem para levantar-se. Silencioso e tenso inspecionou a casa. No quarto dos filhos, totalmente às escuras, distinguiu um rebrilhar avermelhado e inconsistente.
Novo barulho o levou a desviar a atenção e o fez retornar ao próprio quarto e foi com desafogo que encontrou Débora, sentada na cama, cabisbaixa, o quarto inundado de luz.
Comentou sobre a estranheza dos acontecimentos até que viu, incrédulo, a esposa elevar o rosto congestionado e lentamente, como mastigando as palavras, falar aquela voz estranha, grossa e gutural.
Desmaiou.

*      *      *      *      *

Dos insólitos e inexplicáveis acontecimentos daquela noite medonha, Augusto Matos adquiriu uma desusada nervosia de modos, tão flagrante que aconteceu despertar olhares interrogativos até das crianças.
Passa o dia cismarento e, o que mais o inquieta é a absoluta tranquilidade da esposa no seu proceder cotidiano.
Assaltam-no dúvidas as mais diversas, desencontradas e descabidas.
Com extrema facilidade reconstitui todos os acontecimentos esdrúxulos e profanos. Hipoteticamente, chega a admitir que tudo não passara de um pesadelo anormal, inextrincável.
Com a aproximação da noite, acentua-se a angústia ante uma não definida expectativa. Ronda, inquieto por toda a casa, metediço e inquiridor.
É neste estado aniquilador de tensão que decide manter vigilância, enfurnado na madrugada.
Com o revólver sob o travesseiro, fumando descontrolado, espreita sons e espera o imponderável. O arrastar da noite é lento e desigual em sua faina metódica.
De chofre os sons espocam nítidos e inconfundíveis, no quarto das crianças.
Armando-se com ânimo forçado e empunhando o revólver, tateia o corredor penumbroso. Ao transpor a porta, no quarto dos filhos, prende-se imerso numa fumaça extremamente densa, impregnada de um cheiro adocicado e enjoativo. Observa atentamente na direção das camas e fica a mirar umas luzes extremamente vermelhas. Tomado de intenso impulso, recua apavorado e acende as luzes. Apoplético e eriçado de horror, comprova o intuído: as luzes são os olhos dos seus filhos, agora fachos apavorantes.
Foge enlouquecido, retornando ao próprio quarto onde encontra a esposa sentada naquela imobilidade patibular. Descontrolado grita, tentando desvencilhar-se do sonho ou reaver a neutralidade do real. Desesperado, tenta escapar às teias insidiosas do pesadelo.
Os gestos pausados de Débora contrastam com o seu riso maligno e a voz estranhamente grossa e antinatural.
Ensandecido, Augusto Matos, dispara a arma à queima-roupa, às cegas. Assiste ao lento esmorecer da esposa e observa o sangue escorrer e formar a mancha enorme no lençol.
Quando se vira, está sob a observação dos olhos inumanos, dos próprios filhos. Ante aqueles olhos de fogo, preme o gatilho até descarregar a arma.
Em total desarranjo, sai da casa aos gritos e, às cegas, instintivamente abandona a casa.
Ganha o rumo da cidade.

"BRONCOS"-In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante

BRONCOS

In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante


São eles, os broncos.
Homens de raça difusa, almas simplórias, crenças rudimentares, religião sincrética, e que têm a padronizá-los o descarnado forte advindo do comum labor ríspido do machado, do azafamar ininterrupto e sufocante do traçador manual, sob um sol de trópico, untuoso de maleitas.
Cabras desabridos de gestos e falares intermitentes, escudados na braveza vera e prática, amostrada e provada dia pós dia, tormento pós-tormento, afora a inocência violenta a requerer superação.
São os filhos bastardos de uma nação madrasta. São os pais extremosos na rispidez dos gestos – que passam pela sincera singeleza da ternura – e são, ainda, os desbravadores dos trieiros suados, ensanguentados e povoados de serpentes e mal assombrados.

– Menino, a-hum! Dizque cascavel, num erra bote. É bicho de pulo seguro e certeiro. Tem ‘té quem bote fé e afirme, que se uma errar o bote, é bem carecido dela morrer de raiva!

Brabos e broncos, os únicos, os escolhidos pelo destino desatinado, apartados pela sagacidade dos capatazes e efetivados pelo eito desumano, destorroador de peles crestadas e mutilador de mãos, transformadas em feixes de calos, transformadas em torqueses de cartilagens.
São eles que, aos bandos – arrebanhados nos lares erráticos –, irmanam-se na companhia momentânea, equilibrando-se em carrocerias de caminhões “toreiros” e desandam um destino igual e nunca monótono. Do país, são os filhos intimoratos tão agigantados quanto frágeis. Não temem os perigos reais, que são enfrentados diuturnamente com desabrida valentia, mas se apavoram com o surreal de estórias do outro mundo. Guardam nas suas almas simples a dicotomia de adultos e meninos. Fortes e ingênuos, mas para sempre destemidos. Firmam seus credos em crendices e respeitam o preceito de não usar camisa pelo avesso e de não ferir árvore onde está pousada a acauã.
Consomem crenças infantis e mitos robustos, à falta de esperanças ou gestos.
Brutos e ingênuos, ferozes e ternos, insensíveis e extremosos, eles são os tenazes e temerários madeireiros do sertão goiano.
Percorrem grunas e cafundós, terras e infernos, desde que a madeira seja farta e o contratante decida.
Defendem subsistência, algo de sustança nos buchos protuberantes dos filhos e são moucos – ou não entendem – para as potocadas sobre defesa ecológica. Acreditam – pela vastidão e abundância – que as matas goianas serão eternas, feito o Pai Eterno.

– É mato, menino, pra machado nenhum dá no fim. Ora, se!

São eles que tomam achego, desincomodados e afeitos aos azaranzados do destino. Armam redes, erigem taperas provisórias, constroem jiraus e desafiam o mato com desassombro desbravatoso.

– S’incomode, não. ‘Manhã de manhãzinha nóis vê isso. Uma noite só, enfadado como nóis tá, dá pra drumi inté dependurado pelos ovos... Des’ que tenha adonde punhá as mão...

A dieta uniforme recomenda arroz / feijão / toucinho / farinha, como básica, complementada com o que do mato bravo possa ser arrebatado: jerimum, melão, pimenta, palmito e mais a caça e a pesca conseguidas nos domingos extraviados por meu Deus.
Os farnéis são individuais e cada qual prepara e consome apartado dos demais. Fazem ritualmente quatro refeições diárias, pois que o estatuto do lanche inexiste.
Brincam bruto, que não tiveram tempo de sofisticar os escassos brinquedos da infância. São desabridos e diretos, já que não conheceram meios que refinam e amansam a malícia. Rígidos, não dissimulam ou admitem dissimulações. Não encontraram o seixo ideal para afiar o gume e a ponta da faca da maledicência. Não dissimulam e não maldizem a sorte.
Brincam – quando brincam – inteiros, que pagode não é carecedor de mascaramentos ou intenções estreitas ou estrangeiras.
Careta e careteio.
Brincam de brincar saudades, tristezas, sorrisos e gestos.
Não raro, à noite (e a noite é sempre precoce pelas bandas de Guapó, Troca-Tapa, Ourominas, Paranã, Chapada dos Veadeiros, Araguaína – tudo mundão besta, oco de mundo), ante o fogo de lenha chorona e sob estrelas – subversivas de tão brilhantes – a prosa se espicha, os causos se sucedem e a melancolia invade e abarca insidiosa os corações.
Impensável e inadmissível o choro, proibida a confissão de fraqueza.

– Da goela, num passa... Esse fi duma égua!

Não há lamento ou soluço – acessórios supérfluos – mas apenas uma tristeza sólida, palpável que o sol seguinte, indiferente e burocrata se encarrega de tanger e expatriar.
Hora de trabalhar, de suar eitos desconformes, de bater ferro e não se incomodar com as treitas inesperadas ou as armadilhas do destino.
A fatalidade do peão madeireiro é a sua patente que, de comparsaria com a sua macheza temerária, requer espaço para existir livre, mas não um existir de bicho.

SOL RENTE - In “Sol Rente” – Marcelo Cavalcante



SOL RENTE



A noitinha atura a monotonia e o sem-sabor igaratuenses. Meninos ensaiam brinquedos e, domingueiros, os rapazes espiam as moças à saída da igreja.
Na praça, Martinho da Hora sustém entre as suas, as mãos de Doralice, entre nervoso e embevecido.
– Faz, isso, não, Martinho. Se pai fica sabendo...
– Tem perigo, não. Essa hora, ele não sai de casa nem a poder de muita promessa.
– Mas o povo fala. Esse povo é enxerido e acaba fazendo enredo...
– Tem perigo, não. Vem cá, vamos sentar ali no banco...
De inesperado, no improviso do momento, a aparição do Coronel Valdetário. Ereto, empertigado e sisudo, no tope dos seus setenta e tantos anos de muito rigor e imposições.
Entredentes, o rancor sai contido.
Inquestionado.

– Doralice, já pra casa! Ligeiro!

Mirar atento, sobre Martinho, de despeito e desaprovação. Por sob o silêncio, no íntimo, a decisão desarrazoada, retemperada e final.

Hum! De’stá, bichim, que ‘cê me paga!

No céu, estrelas e melancolia.


*      *      *      *      *


Forjado e empenhado na violência, fruto da brutalidade já no nascedouro, Valdão – José Alisvaldo do Nascimento – fez,  assumiu e recriou uma história ímpar de crimes e desmandos.
Com o pai tropeiro, foi criado desde a mais esmirrada infância, em lombos de jumentos, percorrendo os caminhos duros do sertão.
Da mãe, não se apercebeu que dote lhe ficou, pois que veio a falecer em serviços – arrochamentos e gemidos – de parto dificultoso.
Do pai herdou a frieza e a insensibilidade humanas.
Do meio inóspito aprendeu as lições de dureza que se desdobraram numa força física que não do pai, que era tico de franzinice.
Talvez, deste somatório desabrochou na vida com um caráter em que a fúria por sangue era preponderante e requisitada.
A sua novena de violências, debutou solene e cava em Crateús quando, a meio uma quaresma amena, arrombou as costas do pai com dois tiros de mosquetão, após carão de pequena monta.
Puxou cadeia de ano e meio, mas conseguiu festejar a protuberância dos dezoito aniversários em liberdade, a poder de fuga espetaculosa que deixou rastro de soldados feridos e um comerciante morto-estatelado, com enterro concorrido em campo santo.
A vida espichou-se no espichado dos acontecimentos e Alisvaldo, já e sempre Valdão, feito magarefe em ofício farto, encompridou mais e mais um emaranhado de mortes.
Tomou gosto e daí, sempre com o tino e a ligeireza afiadas para o manuseio das armas, escalou fama de nomeada que o tocaiou com a contingência de alugar o seu ofício a quem não regateasse preço ou opusesse sermões de consciência.
Indiferente aos dramas humanos, Alisvaldo cumpre suas empreitadas com a justeza de todos os erres, vírgulas e sotaques de seus contratos, ordinariamente verbais.
Apalavrado, coisa contada como se consumada na antecipação da confiança.
Bicho arisco, enviesado dos bofes.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

IX - PIRGENTINO de Almeida RUAS (1951 )- In Antologia dos esquecidos 2



IX - PIRGENTINO de Almeida RUAS (1951 )

           Filho de Adeveraldo Cunha Ruas que foi, como sabemos, um dos mais destacados sociólogos de sua geração, tendo, inclusive, participado do grupo pioneiro da Universidade de São Paulo.
           Igaratuense dos colhões roxos, Pirgentino Ruas, desde a mais tenra idade viu-se na circunstância de conviver com livros o que o transformou num empedernido e compulsivo estudioso. Rato de biblioteca.
           Em precocidade estrambótica, enquanto cursava o primário no grupo escolar, foi aluno dileto de padre Eustáquio, com quem aprendeu, com espantosa facilidade, o latim e o grego. Fala fluentemente quatro idiomas, o que não constituiria assombro não fossem estas línguas mortas: latim, grego, etrusco e javanês. Dos tais idiomas vulgares, além do nordestês, domina com elegância e desenvoltura nove falares modernos.
           Graduado em filosofia, sociologia, física, economia e engenharia no Brasil, excursionou pela Europa (França, Inglaterra, Alemanha e Portugal) onde concluiu os mais diversos e díspares cursos de pós-graduação, todos com excelência acadêmica e com direito a ser condecorado pela rainha da Inglaterra e pelo papa do Vaticano.
           Retornando ao Brasil, estabeleceu-se em Igaratu de onde, até a presente data, não arredou pé. No solar da família desenvolve suas pesquisas e estudos que, de tempos em tempos, publica em revistas acadêmicas internacionais e no O Corneta. É correspondente dos mais importantes centros acadêmicos do mundo, com os quais mentem continuada e profícua correspondência.
           É membro da Academia Brasileira de Ciência, mas a sua maior frustração é não conseguir pertencer à Academia Igaratuense de Letras que, apesar de reconhecer os seus méritos, não o considera um escritor.
           Para a presente antologia escolhemos alguns textos curtos, do tempo em que era aluno de sociologia, menino ainda e cheio de bobices no quengo.

"IGARATU" - in. Antologia dos esquecidos 2


Igaratu é o imaginário, é o sonho torto que se contrapõe a esta realidade desfigurada e a este tempo de chumbo.

Religião S. A Trampolineiros da fé alheia - in Antologia dos Esquecidos 2



Religião S. A

Trampolineiros da fé alheia


"Dou uma rápida consultada na Magna Carta, mais precisamente no tópico que me garante liberdade de consciência e de crença e observo que o texto constitucional me assegura algumas imunidades. Constato que, na prática, a lei que versa sobre liberdade de crença religiosa é extremamente tolerante e permissiva, e que, sob a escusa de professar uma religião (mesmo suspeita ou improvável), existem possibilidades ilimitadas para se safar de toda e qualquer espécie de farsa e fraude religiosa que a fértil imaginação dos malandros for capaz de elucubrar. A aplicação do conto-do-vigário e outros assemelhados implica estar incurso no código penal, ao passo que esse mesmo expediente contra incautos sob a máscara religiosa, não possibilita qualquer risco legal. Basta o escroque proteger a sua traquitanda sob o vasto e indiferenciado manto da crença religiosa. Dessa forma, assim como esses igrejeiros pernósticos e os missionários arrumadinhos e bem alimentados têm o direito de promover ininterrupta e interminável pregação proselitista de suas crenças, eu também quero me reservar idêntico direito.
Rapaz! Esse negócio de crente está virando um negócio da China! Abrem-se mais seitas e igrejas que botequins por este país afora. O exemplo do bispo Macedo, que deixou de ser um mero funcionariozinho da Loterj para se transformar num rico comerciante de religiosidade, tem feito escola. A boa-fé do povo vai enchendo a sacolinha dos espertalhões, numa arapuca que pode ser comparada a tomar bala de criança ou esmola de cego. Tem líder religioso que vende fé com mais descuido e esperteza, que dono de pé-sujo vendendo cachaça falsificada. Tudo em nome de Deus e de Cristo, de Jeová e de Moisés, de Maomé, de Krishna, de Tupã, do Caboclo Cobra Verde etc. Tudo baseado numa teleologia improvável e inconsistente, que se traduz num bordão ideológico de que no livro sagrado (a Bíblia – novo e velho testamentos, no Alcorão, etc.) está a verdade definitiva, infalível e sagrada. É mesmo?
Sem fazermos alusões aos demais livros sagrados que grassam pelo mundo (e todos merecedores de igual respeito e credibilidade), este surto de nascimento de templos - com denominações as mais estapafúrdias - está baseado apenas nas diferentes interpretações da palavra sagrada. Este circo armado para enganar incautos pode ser descrito numa farsa barata na qual parte-se do (pré) conceito de que no livro sagrado (a palavra de Deus) está a verdade absoluta, mas - e em toda enrolação tem um mas - os demais líderes religiosos (pastores, bispos, padres, diáconos, mulahs, profetas, promesseiros, etc.) estão equivocados e apenas a seita que acabei de criar tem a verdadeira interpretação da palavra sagrada. Desta forma, vinde a mim os ingênuos de coração, pois deles não será o dinheiro curto e precário que ganham com o suor de cada dia, em seus ofícios dificultosos. Formas de arrancar este dinheiro são fáceis de inventar e vão desde o dízimo, ao comércio livreiro, passando por toda uma produção e venda de verdadeiros kits onde o kitsch profano-religioso é abundante. É recomendável, ainda, gravar um CD, contendo alguns hits melosos, previsíveis e bem idiotas, com a interpretação de uma popozuda ou de um andrógino destes que se vendem por qualquer dinheiro. Isso é dinheiro garantido em caixa e o Deus Krioerth, em sua magnificência, necessita de numerário para que os seus krioerths-piás (seguidores do primeiro estágio) levem as suas santas e divinas palavras a todos os homens. Como vemos é um Deus vaidoso, que quer desbancar os outros das paradas de sucesso. Um Deus que tem a obsessão de provar aos homens, estes serezinhos insignificantes, que ele existe e deve ser respeitado e até temido.
Neste ponto da exordial seria de bom-tom alguém questionar a fragilidade da condição existencial humana, principalmente sob os aspectos simbólico-espirituais. Como a raça humana, após uma caminhada que varou séculos, chegou a tal ponto de obscurantismo?
Nas sociedades primitivas, onde o drama humano era a sobrevivência física dos indivíduos contra as intempéries e a fome, todos indistintamente tinham que prover a subsistência. Na falta de acumulação de riquezas ou outros “valores” abstratos, cada pessoa tinha que trabalhar. Uma vez criado e em condições físicas completas, a pessoa ia naturalmente tratar de desenvolver as atividades rudimentares que lhe garantiam a vida, ou seja, trabalhar. Um mundo que, na falta de valores diferenciados, todos trabalhavam. Num tipo de sociedade nestes moldes, não teria porque alguém vivesse as custas do semelhante. A justificativa para a existência de alguém diferente, que não precisasse trabalhar para sobreviver, só pode ser encontrada no fato de este alguém ter alguma coisa a oferecer aos demais. Oferecer o quê? Um produto que só ele é possuidor, um “conhecimento” que só ele tem, uma verdade que só a ele foi revelada. Neste momento surge o primeiro ser a viver do trabalho alheio, dando em troca um “conhecimento” aleatório, improvável e autoritário, uma vez que ao sabor da imaginação e interesses daquele que aufere vantagens do mesmo. Neste momento foi descoberta e fundada a diferenciação do privilégio que faz com que um, diferentemente dos demais, não tenha que enfrentar as feras bravias, as andanças necessárias à coleta dos frutos e a construção do próprio abrigo. Em troca fornece a manipulação de ter um poder de decifrar os sinais divinos na água, nos raios, nas vísceras dos animais, nos ossos jogados ao acaso, ou em qualquer coisa que a imaginação possa inventar. Qualquer invencionice basta, ante o temor ao desconhecido.Neste exato momento foi fundado o estatuto da vagabundagem plena, criou-se o nicho que chocaria os atuais “colarinhos brancos” bem cevados com o produto do trabalho alheio.
É exatamente esta trilha primitiva que tem sido percorrida até os dias atuais, por todos as religiões e religiosos que já pisaram a face dessa terra prenhe de místicas e desconhecimentos. A isto se deu nome de fé, e ter fé é um dos pressupostos do livre-arbítrio. No campo abstrato da fé, sob argumentos teleológicos, não há muito o que debater, pois com um obtuso e improvável “Deus quis assim” qualquer charlatão analfabeto se encafua na sua segurança ilógico-argumentativa, ante uma platéia que quer, acima de tudo, acreditar. O mundo tem fome de fantasias que o retira desta vil e perversa realidade que tem livre curso.
Ocorre que no campo prático, no plano material, muito pode ser criticado e questionado, sem a lengalenga besta da palavra divina, que deve ser respeitada, reverenciada e temida. Sob os aspectos materiais, sob os efeitos práticos, sob a intervenção na pura factualidade, podemos questionar as ações humano-religiosas de qualquer aparato de cunho religioso. Na prática, todos os que envolveram o povo na mística, se diferenciaram do próprio povo e passaram a auferir vantagens da mercadoria que comerciavam: a fé. Não existe uma religião sobre a face da terra que não apresentou este aspecto de exploração material ou de poder sobre as sociedades onde vicejaram. Modernamente, não existe nenhuma religião que não interfira no poder político-econômico, não há nenhum de seita e religião que deixe para o seu Deus, apenas os aspectos abstratos. Temos sempre a presença de um Deus viciado em mundanismo, excessivamente humanizado, que castiga, que quer ser reconhecido, que perdoa e que quer se apoderar do trabalho humano para produzir instrumentos (capelas, templos, sinagogas, catedrais, etc.) que sirvam para a sua glória. Que Deus é esse que necessita mostrar aos humanos, uma glória que se reduz a objetos (alguns caríssimos e suntuosos) de pura materialidade?
As iniqüidades cometidas pelos romanos foram superadas em muito pelo fantástico poder do catolicismo, que acolheu papas sodomitas, perversos e criminosos; que instituiu a inquisição onde queimou em vida um contingente enorme de inocentes em fogueiras públicas. Tudo em nome de um deus misericordioso. A argumentação cretina para justificar tais aberrações é a de que isto foram os homens que fizeram e não Cristo. Ora, são os homens que continuam tocando os negócios (rendosos, pois não?) da santa madre igreja. Observando as provas históricas de tantos crimes hediondos, qual a margem de confiança nos homens atuais? Grana e poder, um Vaticano-Estado, rico, com o Banco Ambrosiano fazendo suas falcatruas, protegendo nazistas e banqueiros criminosos.
Se no cenário do catolicismo a devastação moral é exemplar, nos demais ramos do cristianismo a coisa não é menos deprimente e descaradamente cínica. Para que servem toda estas estruturas caríssimas, além de acoitar os profissionais da fé? Os diletantes, os verdadeiros pastores de igreja que tinham seus ofícios, que trabalhavam e, nas horas vagas gastavam o tempo com os seus ideais, foram raras exceções, que não existem mais. É sobre os seus cadáveres e suas vidas exemplares que os padres, bispos, papas, pastores, vivem a sorrelfa, sem ter que enfrentar a fila do desemprego, com a barriga bem forrada com o dinheiro suado e curto do povo trabalhador. Será que este povo não tem vergonha de tirar dos miseráveis o pouco que têm, para prover o próprio sustento, o luxo de suas vidas ou mesmo construir templos para construir moradias para um Deus, que por definição, é imaterial, já que onisciente e onipresente? Com que autoridade moral esses vagabundos, reiteradamente sabujos do poder, interferem na vida material, expropriam o suor dos pobres, em nome de um ser que não tem nenhuma das necessidades atendidas pela materialidade?
O mesmo papa que pede desculpas, em nome da igreja, pelos crimes perpetrados contra índios, minorias e mazelas outras, é a mesma figurinha que conspirou abertamente contra o socialismo e que agora se ressente do descaso com que é tratado pelo capitalismo (ao qual se aliou) em vias de globalização. Provavelmente, num futuro difuso, outro papa estará se dirigindo ao mundo fazendo novas mea-culpas contritas e sinceras. Mas a questão é, como pode uma instituição que está assentada (teoricamente) nos princípios da bondade para com o próximo, na tolerância, ter que pedir desculpas por crimes encharcados de maldades e intolerâncias?
Muitas das novas seitas que brotam como erva daninha pelos subúrbios e palafitas do mundo, são verdadeiras arapucas, especializadas em contos-do-vigário espirituais. Falam de dinheiro para Deus, como se este fizesse compras em supermercados ou mesmo freqüentasse shoppings repletos de roupas de marca. Tudo sob a total proteção da fria lei. No limite, Deus pode se expressar como a bondade humana. Necessariamente não é um ser, mas antes um ideal a ser atingido, e não tem sentido cobrar dízimo ou construir monumentos para uma idéia-conceito.
Hoje em dia, de forma corriqueira, o que se pode constatar é a profissionalização dos líderes religiosos que vivem às expensas do povo, tendo a executar esta tarefa, auxiliares submetidos a um assalariamento mundano.
Mexer com Deus é uma coisa complicada e explorar o próximo, crédulo e ingênuo, atiçando seus temores secretos, talvez o mais abjeto trabalho de magarefe, pois que carrascos dos sentimentos humanos.
Ora, se Deus realmente existe (o que não acredito), teria que ser uma coisa tão incomensurável, que, ao se revelar para alguém, este não teria mais os sentimentos mesquinhos da humanidade, entre eles, principalmente o sentimento da riqueza e do poder. O que se vê entre os bastiões da religiosidade senão enriquecimento e poder?
Como já observamos, não tenhamos dúvidas que a primeira pessoa a conseguir viver as custas de um trabalho não produtivo, foi o curandeiro, o místico da tribo."

terça-feira, 7 de maio de 2013

Alguma Sociologia Jurídica do Cotidiano




ALGUMA SOCIOLOGIA JURÍDICA DO COTIDIANO

Marcelo Cavalcante *

“Por onde passo deixo rastro, deito fama, / desarrumo toda a trama, / desacato o satanás.”
Lero-lero. Edu Lobo

A preocupação basilar de Francis Bacon, no Novum Organon - obra sempre citada entre as que fundam a ciência moderna -, se traduz na necessidade de se exorcizar os ídolos, para que o conhecimento científico se desenvolva sob critérios rigorosos de controle, previsão e causa eficiente. A análise baconiana tipifica os enganos da razão como sendo “de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana: Ídolos da Tribo, Ídolos da Caverna, Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro”. (BACON, 1973: 27).
É neste sentido que considera:
Os maiores embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais importantes. Por isso, a observação não ultrapassa os aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis” (BACON,1973: 31).
Em seguida, prescreve a necessidade de desalojar os ídolos: “todos devem ser abandonados e abjurados (...) (como) espécie de expiação e purgação da mente” (Bacon, 1973: 43/44).
Ao contrário da proposta de Bacon de exorcizar os “ídolas” através do rigor científico, nos dias presentes, a ciência está sendo utilizada para a produção dos mesmos, uma vez que a sacralidade do signo “ciência” é constantemente utilizada, pelos homens - que lançam mão de artifícios ideológicos, via manipulação da realidade - como instrumento de legitimação do poder e manutenção de hegemonia política. Nesta quadra se concretiza a idéia de que “quanto maior é o poder, maior é a tentação de implementá-lo pelo caminho mais curto: a violência. Isso significa amputar da pessoa a liberdade” (BARTHOLO JR. 1988: 106).
Falando sobre estratégias da aquisição do “poder simbólico”, Bourdieu observa que o que está estruturalmente em jogo no “campo intelectual” é a luta pelo “monopólio da definição legítima”. Ou seja, a luta pelo direito de “legitimamente” falar em nome da “verdade verdadeira” e “mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador” (BOURDIEU, 1989: 112).
Como observa o filósofo Burtt, autor de As bases metafísicas da ciência moderna, a exemplo dos demais ramos da ciência, a produção e execução das normas jurídicas não se constituem em exceção, não escapando ao:
Estranho dualismo entre a teoria e a prática esse de nós, modernos – os elétrons são as únicas coisas reais, mas, no entanto, por meios da ciência aplicada, o mundo dos elétrons foi reduzido como nunca a um meio para a realização de fins ideais! O mundo natural é, afinal, mais o lar e o teatro da mente do que seu tirano invisível, e o homem, expressando as funções da razão e do espírito, reúne em um só foco muito mais do saber e da fertilidade criativa do universo do que todo o objeto espaço-temporal de sua contemplação ansiosa” (BURTT, 1983: 253).
Despida do seu ideário humanístico, concretamente ocorre que:
A racionalidade científica transforma-se em ideologia logo que se impõe como a única forma de racionalidade: trata-se então duma miragem mantida a serviço de opções políticas que essa miragem serve simultaneamente para justificar e dissimular. O dogma da racionalidade científica é uma mistificação” (ROQUEPLO, 1979: 154).
A ciência, sem sombra de dúvidas, demonstrou ser o mais eficaz método de interferência na natureza e na realidade. Sob o preceito de causa eficiente, tem demonstrado inesgotável potencial de solução de problemas e apresentado exponencial expansão em todos os campos do interesse humano. Entretanto, não consegue tornar a vida dos homens mais digna, mais feliz ou mais justa, pois sob o seu período de hegemonia detectamos grandes sofrimentos, privações e iniqüidades, sob o signo da produção da morte e do pavor. Isso se dá na medida em que esta estrutura científico-tecnológica se submete aos imperativos políticos e por eles é condicionada. Desta forma, o enorme potencial de eficácia e eficiência da produção científico-tecnológica está condicionado a interesses que preconizam uma eficiência precisa e absoluta no desenvolvimento de armas de destruição, ao mesmo tempo que prescreve a ineficiência e ineficácia da execução indiscriminada e pontual das normas legais.
Há que se observar algumas cândidas e escancaradas razões para a crise do sistema judiciário brasileiro, como observa um decano do jornalismo brasileiro:
“Quando o judiciário não funciona bem num país, muito mais também não funciona o direito. Em particular, é bem plausível imaginar que o grau de aperfeiçoamento judiciário de um país tenha relação com seu nível de corrupção. (...) Seja como for, independentemente de indicadores estatísticos, é conhecimento geral que o sistema judiciário brasileiro é lento, funciona melhor para os ricos do que para os pobres, é mais azeitado para o poder econômico do que para o comum dos mortais e é pouco exposto ao escrutínio público (...) um pouquinho de racionalidade administrativa, quando aplicada, opera maravilhas. Mas, na média geral brasileira, o judiciário é evidentemente afetado por ineficiências que só favorecem a impunidade daqueles envolvidos com a corrupção e com a evasão tributária. O assunto, que vai muito além de casos tópicos como o do TRT-SP, decerto mereceria mais atenção” (ABRAMO, 2000: p. A3).
O objetivo ético-moral das leis está ancorado na idéia de justiça. De certa forma, neste arcabouço repousa as justificativas da existência do aparato jurídico, mesmo porque, o próprio estado moderno “... tem o papel específico de legitimar a ordem existente, de assegurar a lealdade pública ao sistema, de representar simbolicamente o interesse universal, em contraposição ao particular” (SOUZA, 2001: 12). Por outro lado, internamente, no bojo da estrutura judiciária, ocorrem desdobramentos em sua ação, que desvirtuam os fundamentos e mesmo a razão de ser da idéia original de justiça.
Grosso modo, podemos distinguir a existência de uma estrutura judiciária presa a uma dualidade de interesses. Sob um aspecto, refém dos interesses do poder, do estado e de classe; e de outro, buscando garantir os preceitos da cidadania, a lisura das normas pactuadas e estabelecidas. Sob a inspiração do primeiro aspecto, temos um aparato judiciário de recorte técnico-operativo, voltado a meios e fins de objetividade meramente factual. De outro, temos uma busca de justiça, e/ou solução das lides, sob inspiração de igualdade e equidade, ou seja, um conjunto de normas que, apesar de elaborada por homens e interesses determinados, após em vigor, ganha autonomia de aplicação indistinta.
O que ocorre é que a lógica interna do aparato judiciário, em seu desenrolar cotidiano, acaba por se impor aos que nele trabalham (juízes, juristas, advogados, universidades, serventuários da justiça) e sedimenta na sociedade uma idéia de que “isso é assim mesmo”.

1 - Falseamento da regra
Tomemos, como analogia ao campo jurídico, o jogo de futebol e vejamos até onde é possível distorcer suas regras, sem descaracterizá-lo.
Pode ocorrer, e decerto esta hipótese é bem mais corriqueira do que desejaríamos acreditar, que em determinado jogo, o árbitro tenha sido subornado e que atue como um “soprador de apito”, cometendo “erros” propositais sempre em favor de uma determinada equipe. Neste caso, apesar dos veementes e inflamados protesto dos torcedores da equipe prejudicada, não se pode negar que houve efetivamente uma partida de futebol.
Outra hipótese também corriqueira e nefasta para o esporte é quando determinados jogadores são subornados para facilitar as ações dos adversários. Nestes casos, a platéia assiste indignada o goleiro de uma agremiação falhar bisonhamente, defensores serem facilmente vencidos e atacantes errarem jogadas primárias, tudo de forma inexplicável. Neste caso, apesar da reação inconformada dos torcedores, do quebra-quebra após o jogo e mesmo de agressões generalizadas, não se pode negar que houve efetivamente uma partida de futebol.
Imaginemos, ainda, uma partida na qual outros tipos de violações foram cometidas. Por exemplo, uma das equipes tem as medidas de suas traves estreitadas para as dimensões mínimas de meio metro quadrado e a adversária tem as suas ampliadas para vinte metros de largura por quatro de altura; os atletas da equipe já privilegiada, durante o jogo, podem, a qualquer momento conduzir a bola com as mãos, enquanto os da equipe adversária só podem usar a perna esquerda para contatá-la; além do que, os integrantes da equipe podem usar apito e arbitrar o jogo, cabendo aos adversários apenas acatar as decisões de tais marcações; e, finalmente, a equipe privilegiada pode entram em campo com dezoito jogadores enquanto a outra só pode inscrever oito jogadores, sendo que dois deles têm que ser necessariamente paraplégicos. Neste caso extremado, além dos absurdos hipotéticos propostos, não se poderia afirmar que houve um jogo de futebol.
Decerto que esta última hipótese formulada será, muito justamente, considerada uma extravagância do autor, uma vez que é totalmente destituída de propósito, mas absurdos “similares” ocorrem na esfera do direito internacional e também no campo jurídico brasileiro. Este absurdo ganha foros de legitimidade e se consagra enquanto procedimento encontrável.
Sob o aspecto filosófico da justiça, a total ausência de regras contém mais justiça que o estabelecimento de regras que não são cumpridas por segmentos a ela submetidos. Saber que existo numa sociedade onde impera a lei do mais forte me dá mais tranqüilidade que os enganos de que vivo numa sociedade submetida a regras, mas que estas são corriqueiramente falseadas. Mais perverso que a barbárie pura e simples, é o ludíbrio que facilita as iniqüidades dos mais fortes. A falsa proteção desarma a possibilidade do mais fraco desenvolver mecanismos de auto-defesa, artifícios de sobrevivência.

2 - Direitos e não deveres
Imaginemos um grupo de homens que resolve criar um novo tipo de jogo. Para tanto elegem um líder e a ele é delegado o poder de criar as regras. Este líder, apesar de sua condição, também participará do jogo, e desta forma, ao poder decidir as regras, estará automaticamente com imensas vantagens sobre os demais. Ocorre que após tudo acertado e as regras criadas e estabelecidas, exatamente o líder, pelo seu desempenho pífio no jogo, resolve não cumprir as regras estabelecidas, aliás, regras criadas e estabelecidas por ele. Deste nosso exemplo fictício, algumas coisas ficam cristalinas. Primeiramente, constatamos que o líder não tinha os predicados mínimos para exercer a liderança. Em segundo lugar, nos convencemos que se trata de um incompetente e finalmente, que possui sérios desvios de caráter, ao tentar burlar as regras que ele mesmo criou por delegação de todos. Este caso imaginado bem serve de exemplo para o que vem ocorrendo no Brasil com relação pífio desempenho do poder público em quase todas as áreas.
O Estado de Direito pressupõe um pacto onde todos, indistinta e compulsoriamente, se submetem às leis. Apesar de existir um didatismo que estabelece uma hierarquia entre elas, na qual a Constituição está situada no topo, o espírito da legalidade nos ensina que as leis e normas instituídas de acordo com as condições e formalidades pactuadas devem ser observadas, respeitadas, exigidas, defendidas e cumpridas. Não se pode manter um edifício tão complexo – as relações sociais – deixando-se que prevaleça a possibilidade de arbítrio, por quem quer que seja, ou de privilégio entre determinados diplomas legais. Sob esta perspectiva, lei é lei e deve ser cumprida. Ponto final. Caso isto não seja observado com rigor, inviabiliza-se o princípio da igualdade de direitos no interior de uma sociedade. Não é admissível ou tolerável a aceitação da possibilidade da existência de leis que são rigorosamente cumpridas ao lado de outras que são encaradas com permissividades e omissões, leis que “não pegam”, e ainda outras que não passam da condição de “letras mortas”. Estas últimas são leis que ninguém questiona a legitimidade e legalidade, mas que simplesmente não são cumpridas e quem quiser que se queixe ao bispo.
Este estado deplorável de coisas se apresenta deveras agudo na medida em que internaliza um duplo caráter de degradação – subjetivo e objetivo – nas relações sociais. Uma lei desrespeitada desmoraliza a fonte do poder e as demais.
De todos os entes que compõem uma sociedade moderna, o governo, por força de suas próprias atribuições legais, é o que menos tem justificativas, sob todos os aspectos, para deixar de cumprir as leis. É o poder constituído quem debate, aprova, cria e executa as leis no país. É o Estado o único detentor do monopólio legal da violência legítima. Diante do argumentado e lembrando a questão inicial, onde encontrar justificativas ou perdão para aqueles que autorizados pela sociedade para criar leis que regulem as relações sociais, não as cumprem?
Apesar de impotente, a sociedade observa desconfiada e mesmo enojada, a desenvoltura com que o poder público, assenhoreado de parruda arrogância, descumpre as leis por ele mesmo criadas e aprovadas.
O Brasil é um país no qual, muitas vezes, juizes e desembargadores não cumprem os prazos processuais estabelecidos em lei. Esta prática vem sendo incorporada ao cotidiano forense como uma “coisa natural”. Os prazos judiciais estão capitulados em lei e, portanto, deveriam ser rigorosamente cumpridos. Quando questionados por raras e tímidas representações, os magistrados alegam excesso de trabalho. O paradoxal é que, em casos idênticos, o cidadão comum não pode argüir a mesma justificativa para se eximir de cumprir determinadas leis. Ai dele se fizer a mesma alegação com o fito de não atender a uma determinação judicial.
Não há como olhar o nosso sistema judiciário e não esbarrar com as suas imensas e flagrantes iniqüidades. O sistema judiciário brasileiro prima por uma absurda e inaceitável promoção da desigualdade legal entre iguais. Corroboram para tanto, a morosidade, o desaparelhamento do judiciário como um todo, a ineficiência programada das promotorias e defensorias públicas e os inumeráveis e inenarráveis jeitinhos que propiciam a tendenciosa aplicação da lei em sua extensão legítima, para a sociedade como um todo.
O país tem assistido perplexo um verdadeiro festival de espertezas, verdadeiros atentados ao espírito de justiça e às normas sociais. Estas espertezas jurídicas podem ser justificadas pela existência de dispositivos que as permitem, mas não convencem ninguém. Ao ver o juiz Nicolau conseguir uma prisão domiciliar sob a escusa de motivos de saúde, o brasileiro fica a imaginar quantos milhares de outros presos pobres estão doentes sem ter o mesmo benefício. Aliás, não é segredo para ninguém que temos uma quantidade enorme de apenados que, apesar de já terem cumprido as suas penas, continuam detidos em função da falta de um papel, de um mero trâmite burocrático.
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da república, em recente pronunciamento, reputou o sistema judiciário como inadequado e ineficiente. Os congressistas não se fartam de tecer críticas duras a este sistema, chegando o senador Pedro Simon a afirmar que a perdurar este estado de coisas, o país será inviável. Ministros, desembargadores e juízes reconhecem que o sistema necessita de urgentes reformulações.
Disso tudo, se depreende que existe uma unanimidade sobre a ineficiência, ineficácia e dos males que o sistema judiciário vigente tem acarretado para a sociedade em geral. Se todos estão acordes de que este sistema é absurdo, por que ele perdura?

 

Bibliografia:


ABRAMO, Cláudio Weber. Judiciário e corrupção, Folha de S. Paulo, 12/11/2000, p. A3.
BACON, F. Novum organum. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BARTHOLO JR., Roberto S. “Da Vida Provisória”, In. Ciência e Ética. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1988.
BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.
DESPANDE, Rohit, PARASURAMAN, A., Linking corporate culture to strategic planning, Business Horizons, nº 29, 3, Maio-Junho, 1986.
HUSSEINI, Marta G., “Controle social do judiciário”. In Acorda Brasil2002. Disponível em www.acordabrasil.com.br
ROQUEPLO, Ph. “Oito teses sobre o significado da ciência”. In A crítica da ciência (Org. Jorge Dias de Deus), Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
SOUZA, Carlos Eduardo Baesse, O capitalismo contemporâneo: o papel do Estado e o problema das crises.

Resumo:
O presente texto procura lançar subsídios para a discussão da crise e reforma do Judiciário sob a perspectiva de uma maior eficiência em seu desempenho junto ao usuário, entendendo que tal questão não se esgota na modificação de leis.

Palavras-chave: Estado, ciência e tecnologia, judiciário, justiça, poder.


* Marcelo Cavalcante é cientista político (IFCS/UFRJ), M. Sc. (COPPE/UFRJ), Doutorado em Saúde Pública (Fiocruz); publicou mais de 30 livros, dentre eles Saga  dos perplexosSol rente e Antologia dos esquecidos.

Artigo publicado originalmente na Rvista ACHEGAS de Ciência Política.
Marcelo Cavalcante
Sociólogo, professor.
Escritor e compositor tem alguns livros publicados e uns tantos CDs gravados com suas composições (em parcerias diversas).
Integra o Cantigários, movimento musical de MPB, ao lado de diversos músicos, entre eles: Paulo Maia, Mano Ferreira, César Ceará e Márcio Pombo.
Faz música por prazer e escreve porque sem a escrita e os sonhos ninguém segura esse rojão.
Neste ano de 2013 fará uma noite de autógrafos e na oportunidade estará lançando 30 livros, coisa que acreditamos inédita no país.