ALGUMA SOCIOLOGIA JURÍDICA DO COTIDIANO
“Por onde
passo deixo rastro, deito fama, / desarrumo toda a trama, / desacato o satanás.”
Lero-lero. Edu Lobo
A preocupação basilar de Francis Bacon, no Novum Organon -
obra sempre citada entre as que fundam a ciência moderna -, se traduz
na necessidade de se exorcizar os ídolos, para que o conhecimento
científico se desenvolva sob critérios rigorosos de controle, previsão e
causa eficiente. A análise baconiana tipifica os enganos da razão como
sendo “de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana: Ídolos da Tribo, Ídolos da Caverna, Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro”. (BACON, 1973: 27).
É neste sentido que considera:
“Os maiores
embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da
incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma
que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não
o afetando de imediato, são mais importantes. Por isso, a observação
não ultrapassa os aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula a
observação das invisíveis” (BACON,1973: 31).
Em seguida, prescreve a necessidade de desalojar os ídolos: “todos devem ser abandonados e abjurados (...) (como) espécie de expiação e purgação da mente” (Bacon, 1973: 43/44).
Ao contrário da proposta de Bacon de
exorcizar os “ídolas” através do rigor científico, nos dias presentes, a
ciência está sendo utilizada para a produção dos mesmos, uma vez que a
sacralidade do signo “ciência” é constantemente utilizada, pelos homens -
que lançam mão de artifícios ideológicos, via manipulação da realidade -
como instrumento de legitimação do poder e manutenção de hegemonia
política. Nesta quadra se concretiza a idéia de que “quanto maior é o
poder, maior é a tentação de implementá-lo pelo caminho mais curto: a
violência. Isso significa amputar da pessoa a liberdade” (BARTHOLO JR. 1988: 106).
Falando sobre estratégias da
aquisição do “poder simbólico”, Bourdieu observa que o que está estruturalmente em jogo no “campo intelectual” é a luta pelo
“monopólio da definição legítima”. Ou seja, a luta pelo direito de “legitimamente” falar em nome da “verdade verdadeira”
e
“mesmo
as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em função dos
interesses materiais e também simbólicos do seu portador” (BOURDIEU, 1989: 112).
Como observa o filósofo Burtt, autor de As bases metafísicas da ciência moderna,
a exemplo dos demais ramos da ciência, a produção e execução das normas
jurídicas não se constituem em exceção, não escapando ao:
“Estranho
dualismo entre a teoria e a prática esse de nós, modernos – os elétrons
são as únicas coisas reais, mas, no entanto, por meios da ciência
aplicada, o mundo dos elétrons foi reduzido como nunca a um meio para a
realização de fins ideais! O mundo natural é, afinal, mais o lar e o
teatro da mente do que seu tirano invisível, e o homem, expressando as
funções da razão e do espírito, reúne em um só foco muito mais do saber e
da fertilidade criativa do universo do que todo o objeto
espaço-temporal de sua contemplação ansiosa” (BURTT, 1983: 253).
Despida do seu ideário humanístico, concretamente ocorre que:
“A racionalidade
científica transforma-se em ideologia logo que se impõe como a única
forma de racionalidade: trata-se então duma miragem mantida a serviço de
opções políticas que essa miragem serve simultaneamente para justificar
e dissimular. O dogma da racionalidade científica é uma mistificação” (ROQUEPLO, 1979: 154).
A ciência, sem sombra de dúvidas,
demonstrou ser o mais eficaz método de interferência na natureza e na
realidade. Sob o preceito de causa eficiente, tem demonstrado
inesgotável potencial de solução de problemas e apresentado exponencial
expansão em todos os campos do interesse humano. Entretanto, não
consegue tornar a vida dos homens mais digna, mais feliz ou mais justa,
pois sob o seu período de hegemonia detectamos grandes sofrimentos,
privações e iniqüidades, sob o signo da produção da morte e do pavor.
Isso se dá na medida em que esta estrutura científico-tecnológica se
submete aos imperativos políticos e por eles é condicionada. Desta
forma, o enorme potencial de eficácia e eficiência da produção
científico-tecnológica está condicionado a interesses que preconizam uma
eficiência precisa e absoluta no desenvolvimento de armas de
destruição, ao mesmo tempo que prescreve a ineficiência e ineficácia da
execução indiscriminada e pontual das normas legais.
Há que se observar algumas cândidas e
escancaradas razões para a crise do sistema judiciário brasileiro, como
observa um decano do jornalismo brasileiro:
“Quando o
judiciário não funciona bem num país, muito mais também não funciona o
direito. Em particular, é bem plausível imaginar que o grau de
aperfeiçoamento judiciário de um país tenha relação com seu nível de
corrupção. (...) Seja como for, independentemente de indicadores
estatísticos, é conhecimento geral que o sistema judiciário brasileiro é
lento, funciona melhor para os ricos do que para os pobres, é mais
azeitado para o poder econômico do que para o comum dos mortais e é
pouco exposto ao escrutínio público (...) um pouquinho de racionalidade
administrativa, quando aplicada, opera maravilhas. Mas, na média geral
brasileira, o judiciário é evidentemente afetado por ineficiências que
só favorecem a impunidade daqueles envolvidos com a corrupção e com a
evasão tributária. O assunto, que vai muito além de casos tópicos como o
do TRT-SP, decerto mereceria mais atenção” (ABRAMO, 2000: p. A3).
O objetivo ético-moral das leis está
ancorado na idéia de justiça. De certa forma, neste arcabouço repousa as
justificativas da existência do aparato jurídico, mesmo porque, o
próprio estado moderno “... tem o papel específico de legitimar a
ordem existente, de assegurar a lealdade pública ao sistema, de
representar simbolicamente o interesse universal, em contraposição ao
particular” (SOUZA, 2001: 12). Por outro lado, internamente, no
bojo da estrutura judiciária, ocorrem desdobramentos em sua ação, que
desvirtuam os fundamentos e mesmo a razão de ser da idéia original de
justiça.
Grosso modo, podemos distinguir a
existência de uma estrutura judiciária presa a uma dualidade de
interesses. Sob um aspecto, refém dos interesses do poder, do estado e
de classe; e de outro, buscando garantir os preceitos da cidadania, a
lisura das normas pactuadas e estabelecidas. Sob a inspiração do
primeiro aspecto, temos um aparato judiciário de recorte
técnico-operativo, voltado a meios e fins de objetividade meramente
factual. De outro, temos uma busca de justiça, e/ou solução das lides,
sob inspiração de igualdade e equidade, ou seja, um conjunto de normas
que, apesar de elaborada por homens e interesses determinados, após em
vigor, ganha autonomia de aplicação indistinta.
O que ocorre é que a lógica interna do
aparato judiciário, em seu desenrolar cotidiano, acaba por se impor aos
que nele trabalham (juízes, juristas, advogados, universidades,
serventuários da justiça) e sedimenta na sociedade uma idéia de que
“isso é assim mesmo”.
1 - Falseamento da regra
Tomemos, como analogia ao campo
jurídico, o jogo de futebol e vejamos até onde é possível distorcer suas
regras, sem descaracterizá-lo.
Pode ocorrer, e decerto esta hipótese é
bem mais corriqueira do que desejaríamos acreditar, que em determinado
jogo, o árbitro tenha sido subornado e que atue como um “soprador de
apito”, cometendo “erros” propositais sempre em favor de uma determinada
equipe. Neste caso, apesar dos veementes e inflamados protesto dos
torcedores da equipe prejudicada, não se pode negar que houve
efetivamente uma partida de futebol.
Outra hipótese também corriqueira e
nefasta para o esporte é quando determinados jogadores são subornados
para facilitar as ações dos adversários. Nestes casos, a platéia assiste
indignada o goleiro de uma agremiação falhar bisonhamente, defensores
serem facilmente vencidos e atacantes errarem jogadas primárias, tudo de
forma inexplicável. Neste caso, apesar da reação inconformada dos
torcedores, do quebra-quebra após o jogo e mesmo de agressões
generalizadas, não se pode negar que houve efetivamente uma partida de
futebol.
Imaginemos, ainda, uma partida na qual
outros tipos de violações foram cometidas. Por exemplo, uma das equipes
tem as medidas de suas traves estreitadas para as dimensões mínimas de
meio metro quadrado e a adversária tem as suas ampliadas para vinte
metros de largura por quatro de altura; os atletas da equipe já
privilegiada, durante o jogo, podem, a qualquer momento conduzir a bola
com as mãos, enquanto os da equipe adversária só podem usar a perna
esquerda para contatá-la; além do que, os integrantes da equipe podem
usar apito e arbitrar o jogo, cabendo aos adversários apenas acatar as
decisões de tais marcações; e, finalmente, a equipe privilegiada pode
entram em campo com dezoito jogadores enquanto a outra só pode inscrever
oito jogadores, sendo que dois deles têm que ser necessariamente
paraplégicos. Neste caso extremado, além dos absurdos hipotéticos
propostos, não se poderia afirmar que houve um jogo de futebol.
Decerto que esta última hipótese
formulada será, muito justamente, considerada uma extravagância do
autor, uma vez que é totalmente destituída de propósito, mas absurdos
“similares” ocorrem na esfera do direito internacional e também no campo
jurídico brasileiro. Este absurdo ganha foros de legitimidade e se
consagra enquanto procedimento encontrável.
Sob o aspecto filosófico da justiça, a
total ausência de regras contém mais justiça que o estabelecimento de
regras que não são cumpridas por segmentos a ela submetidos. Saber que
existo numa sociedade onde impera a lei do mais forte me dá mais
tranqüilidade que os enganos de que vivo numa sociedade submetida a
regras, mas que estas são corriqueiramente falseadas. Mais perverso que a
barbárie pura e simples, é o ludíbrio que facilita as iniqüidades dos
mais fortes. A falsa proteção desarma a possibilidade do mais fraco
desenvolver mecanismos de auto-defesa, artifícios de sobrevivência.
2 - Direitos e não deveres
Imaginemos um grupo de homens que
resolve criar um novo tipo de jogo. Para tanto elegem um líder e a ele é
delegado o poder de criar as regras. Este líder, apesar de sua
condição, também participará do jogo, e desta forma, ao poder decidir as
regras, estará automaticamente com imensas vantagens sobre os demais.
Ocorre que após tudo acertado e as regras criadas e estabelecidas,
exatamente o líder, pelo seu desempenho pífio no jogo, resolve não
cumprir as regras estabelecidas, aliás, regras criadas e estabelecidas
por ele. Deste nosso exemplo fictício, algumas coisas ficam cristalinas.
Primeiramente, constatamos que o líder não tinha os predicados mínimos
para exercer a liderança. Em segundo lugar, nos convencemos que se trata
de um incompetente e finalmente, que possui sérios desvios de caráter,
ao tentar burlar as regras que ele mesmo criou por delegação de todos.
Este caso imaginado bem serve de exemplo para o que vem ocorrendo no
Brasil com relação pífio desempenho do poder público em quase todas as
áreas.
O Estado de
Direito pressupõe um pacto onde todos, indistinta e compulsoriamente, se
submetem às leis. Apesar de existir um didatismo que estabelece uma
hierarquia entre elas, na qual a Constituição está situada no topo, o
espírito da legalidade nos ensina que as leis e normas instituídas de
acordo com as condições e formalidades pactuadas devem ser observadas,
respeitadas, exigidas, defendidas e cumpridas. Não se pode manter um
edifício tão complexo – as relações sociais – deixando-se que prevaleça a
possibilidade de arbítrio, por quem quer que seja, ou de privilégio
entre determinados diplomas legais. Sob esta perspectiva, lei é lei e
deve ser cumprida. Ponto final. Caso isto não seja observado com rigor,
inviabiliza-se o princípio da igualdade de direitos no interior de uma
sociedade. Não é admissível ou tolerável a aceitação da possibilidade da
existência de leis que são rigorosamente cumpridas ao lado de outras
que são encaradas com permissividades e omissões, leis que “não pegam”, e
ainda outras que não passam da condição de “letras mortas”. Estas
últimas são leis que ninguém questiona a legitimidade e legalidade, mas
que simplesmente não são cumpridas e quem quiser que se queixe ao bispo.
Este estado
deplorável de coisas se apresenta deveras agudo na medida em que
internaliza um duplo caráter de degradação – subjetivo e objetivo – nas
relações sociais. Uma lei desrespeitada desmoraliza a fonte do poder e
as demais.
De todos os
entes que compõem uma sociedade moderna, o governo, por força de suas
próprias atribuições legais, é o que menos tem justificativas, sob todos
os aspectos, para deixar de cumprir as leis. É o poder constituído quem
debate, aprova, cria e executa as leis no país. É o Estado o único
detentor do monopólio legal da violência legítima. Diante do argumentado
e lembrando a questão inicial, onde encontrar justificativas ou perdão
para aqueles que autorizados pela sociedade para criar leis que regulem
as relações sociais, não as cumprem?
Apesar de
impotente, a sociedade observa desconfiada e mesmo enojada, a
desenvoltura com que o poder público, assenhoreado de parruda
arrogância, descumpre as leis por ele mesmo criadas e aprovadas.
O Brasil é um
país no qual, muitas vezes, juizes e desembargadores não cumprem os
prazos processuais estabelecidos em lei. Esta prática vem sendo
incorporada ao cotidiano forense como uma “coisa natural”. Os prazos
judiciais estão capitulados em lei e, portanto, deveriam ser
rigorosamente cumpridos. Quando questionados por raras e tímidas
representações, os magistrados alegam excesso de trabalho. O paradoxal é
que, em casos idênticos, o cidadão comum não pode argüir a mesma
justificativa para se eximir de cumprir determinadas leis. Ai dele se
fizer a mesma alegação com o fito de não atender a uma determinação
judicial.
Não há como olhar o nosso sistema
judiciário e não esbarrar com as suas imensas e flagrantes iniqüidades. O
sistema judiciário brasileiro prima por uma absurda e inaceitável
promoção da desigualdade legal entre iguais. Corroboram para tanto, a
morosidade, o desaparelhamento do judiciário como um todo, a
ineficiência programada das promotorias e defensorias públicas e os
inumeráveis e inenarráveis jeitinhos que propiciam a tendenciosa
aplicação da lei em sua extensão legítima, para a sociedade como um
todo.
O país tem
assistido perplexo um verdadeiro festival de espertezas, verdadeiros
atentados ao espírito de justiça e às normas sociais. Estas espertezas
jurídicas podem ser justificadas pela existência de dispositivos que as
permitem, mas não convencem ninguém. Ao ver o juiz Nicolau conseguir uma
prisão domiciliar sob a escusa de motivos de saúde, o brasileiro fica a
imaginar quantos milhares de outros presos pobres estão doentes sem ter
o mesmo benefício. Aliás, não é segredo para ninguém que temos uma
quantidade enorme de apenados que, apesar de já terem cumprido as suas
penas, continuam detidos em função da falta de um papel, de um mero
trâmite burocrático.
Fernando
Henrique Cardoso, ex-presidente da república, em recente pronunciamento,
reputou o sistema judiciário como inadequado e ineficiente. Os
congressistas não se fartam de tecer críticas duras a este sistema,
chegando o senador Pedro Simon a afirmar que a perdurar este estado de
coisas, o país será inviável. Ministros, desembargadores e juízes
reconhecem que o sistema necessita de urgentes reformulações.
Disso tudo, se
depreende que existe uma unanimidade sobre a ineficiência, ineficácia e
dos males que o sistema judiciário vigente tem acarretado para a
sociedade em geral. Se todos estão acordes de que este sistema é
absurdo, por que ele perdura?
Bibliografia:
ABRAMO, Cláudio Weber. Judiciário e corrupção, Folha de S. Paulo, 12/11/2000, p. A3.
BACON, F. Novum organum. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BARTHOLO JR., Roberto S. “Da Vida Provisória”, In. Ciência e Ética. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1988.
BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.
DESPANDE, Rohit, PARASURAMAN, A., Linking corporate culture to strategic planning, Business Horizons, nº 29, 3, Maio-Junho, 1986.
HUSSEINI, Marta G., “Controle social do judiciário”. In Acorda Brasil, 2002. Disponível em www.acordabrasil.com.br
ROQUEPLO, Ph. “Oito
teses sobre o significado da ciência”. In A crítica da ciência (Org.
Jorge Dias de Deus), Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
SOUZA, Carlos Eduardo Baesse, O capitalismo contemporâneo: o papel do Estado e o problema das crises.
Resumo:
O presente texto procura lançar
subsídios para a discussão da crise e reforma do Judiciário sob a
perspectiva de uma maior eficiência em seu desempenho junto ao usuário,
entendendo que tal questão não se esgota na modificação de leis.
Palavras-chave: Estado, ciência e tecnologia, judiciário, justiça, poder.