terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O capitalismo, a corrupção e o aparelhamento do estado

Posto que, na modernidade, a hipocrisia se estabelece enquanto estruturada, como elemento estratégico que torna possível a continuidade de relações assimétricas entre países e mesmo nas questões da cidadania. O epicentro de tal arranjo, o seu estabelecimento de forma clara, se dá com o final da segunda guerra com a imposição de uma versão logicamente insustentável, na qual os perdedores foram demonizados e os vencedores endeusados e entronizados em santuário inconsútil. Uma história recontada de forma eivada de abusos, na qual se incutiu na memória social do mundo um Hitler mefistofélico em todos os sentidos e, ao mesmo tempo, se fez esquecer quem autorizou o lançamento de duas bombas atômicas sobre as cidades nipônicas. Óbvio que a justificativa de encurtar o sofrimento da guerra é conversa para alices mais desavisadas que a original. Creio que este é o marco fundador que estabelece e entroniza a hipocrisia enquanto categoria de sobrevivência (diplomacia possível), uma válvula de escape a impasses incontornáveis, diante forças extremamente díspares. Destarte, seguimos, até uma ruptura, uma existência sob o signo e o jugo do nojo.
O sistema capitalista tem regras que, apesar de modificadas pari passu ao avanço das forças sociais, mantem como eixo basilar o crescimento da produção e dos mercados, ou seja, a expansão capitalista. Tal desiderato (ou condenação) é inerente ao próprio sistema e independe de comandos determinados.
A abolição (embora tardia) da escravidão no Brasil ocorreu muito mais em função de pressões do capitalismo internacional nascente (capitaneado pelos ingleses) do que por força dos sentimentos humanitários da princesa Isabel, a redentora. A escravidão se tornou inviável, não em função de derramados discursos de cunho sentimentaloide, mas sim pelo fato de que era um entrave à expansão do capitalismo, posto que contrariava a sua lógica de previsão e controle do processo produtivo.
O processo de descolonização no continente africano não resultou da tomada de consciência humanitária do reconhecimento de direito e merecimento de respeito à autodeterminação dos povos, mas sim com a implementação de novas formas, mais eficazes, de exploração de riquezas pelo mundo afora, sem a necessária ocupação territorial que onerava o capital desnecessariamente. Assim como não há almoço grátis, não há um pingo de sentimento nesta carruagem povoada de lógica irreformável, máquina desgovernada, com o feio nos dentes, que constrange a ricos e pobres aos seus ditames de lucro. Mesmo Bill Gates e outros com fortunas maiores não contrariam as suas regras gerais sob pena de sofrer a decadência econômica.
Nesta sua nova fase, mais uma vez por rotas transversas, o sistema hegemônico passa a promover um combate à corrupção, post que este, alastrado pela periferia do sistema produz entraves para a livre expansão ao seu livre curso. A lógica do capital, apesar de objetivar o lucro não comporta o roubo puro e simples como uma de suas prerrogativas. O suborno de empresas e governos, no âmbito de concorrências transnacionais, está na contramão da lógica dos negócios, posto que o sistema não se reproduz através de crimes, pelo menos não dos crimes capitulados nos códigos criminais da quase totalidade do concerto das nações.
Hoje, no Brasil, nos rastros retumbantes de escândalos nunca vistos, através de crimes nunca ousados, nos deparamos com a sociedade brasileira extravasando uma indignação nunca antes registrada. O debate renhido e ainda incruento se dá em torno de uma operação denominada Lava-Jato, que teve como ponto de partida atos de corrupção na Petrobras e que se espalhou pela máquina administrativa estatal e que agora coloca no epicentro o ex-presidente Lula, como principal suspeito de ser o chefe de uma quadrilha com atuação sem precedentes na história do mundo dito civilizado. Por ter como alvo a elite no poder (empresários e políticos), as investigações e os julgamentos sofrem uma extrema e indevida politização de lado a lado que atiçam paixões desenfreadas e argumentações alucinadas. Neste momento, o debate está centralizado em torno do poder, no afastamento da presidente Dilma e convocação de novas eleições. Tal debate tem criado o mito de que a eleição de um novo presidente da república purgará a sociedade de seus principais males. Vã demagogia! Ingênua quimera!
Os problemas do país são mais sérios e mais profundos do que promover eleições e empossar eleitos, pois reside no que, como e para quem irão governar. Faz muito tempo que a máscara caiu e que o poder é adquirido e sustentado tão somente através de fisiologismos escancarados. Faz muito tempo que a escolha de um ministro não recai sobre um cidadão preparado para desempenhar as funções da sua pasta, uma vez que um ministério representa a adesões e apoios ao que eles denominaram de base parlamentar. Esqueceram que o Ministério da Saúde existe com a finalidade precípua de organizar a prestação de serviços de saúde para a população e não para manter um presidente com maioria no Congresso. Dessa forma o Estado passa a atender as suas necessidades em detrimento da população em geral, ou seja, deixa de administrar a sociedade para se dedicar a cevar a elite ora no poder.
A primeira e mais aguda perda, é a autoridade moral. Sem parâmetros éticos as nossas elites não se apercebem que perderam há muito os referencias que norteiam uma sociedade minimamente estruturada em igualdade e justiça. A crise moral que recobre os poderes da República e as elites nacionais é muito mais danosa e intransponível do que a crise econômica de singular crueza.
Foram tantos os séculos e tão fartas as doses que as seringas da hipocrisia irrigaram as veias das nossas elites a um ponto de esbarrar numa overdose, ponto sem retorno no vício. O patrimonialismo, paulatinamente estruturado, atingiu um limite em que sufoca a sociedade com suas demandas por privilégios cada vez mais abusivos. Perdeu-se a noção da razoabilidade na medida em que tudo, qualquer monstruosidade pode ser justificada. Vivemos num país em que cartorialmente as justificativas não necessitam ser minimamente racionais ou razoáveis, pois se esgotam na própria justificativa. Neste sentido, por exemplo, um juiz concede um habeas corpus a um traficante sob a justificativa de que as celas da Polícia Federal não reúnem condições dignas de mantê-lo. Espantosamente a comprovação de que todas as demais celas do país são piores não levam os nossos juízes a mandarem soltar todos os presos do Brasil. Dessa forma, juiz pode justificar qualquer coisa, pois o que se requer é uma justificativa, não importando o seu conteúdo.
A assimetria está incorporada ao nosso cotidiano de forma tão empedernida que mesmo cidadãos bem intencionados não mais conseguem distinguir o justo do injusto, o legítimo do privilégio, o honesto do desonesto. Difícil, senão impossível, encontrar algum nicho de poder que não esteja eivado de privilégios. Tornou-se lugar comum, mesmo no STF, soluções e decisões lambuzadas de corporativismo.
Vivemos um simulacro de lados ideológicos, pois que quaisquer ideologias são tragadas inexoravelmente por uma realidade estruturada que as antecede e as conformam. Em verdade, exercer o poder no Brasil, independe de ser de esquerda ou de direita, pois a estrutura sobre a qual o poder é exercido tem forma própria onde prepondera um patrimonialismo que se aprimora a cada dia e que tem como corolário a garantia de impunidade para os seus reinóis ridículos. Tal situação pode ser comparada ao do usuário de cocaína que, uma vez viciado, necessita aumentar paulatinamente a dose, até a overdose fatal. Da mesma forma, as nossas elites viciadas no mando indiscriminado, necessitam expandir as suas carreirinhas de privilégios mesmo que sabendo que a dose fatal está se aproximando inexoravelmente, uma vez que faz tempo o limite do tolerável foi ultrapassado.
Dessa forma, por mais que as paixões incendeiam os debates na atual conjuntura, por mais que o Partido dos Trabalhadores tenha institucionalizado uma política quadrilheira no interior do Estado, circunscrever a crise a tais sucessos é transformar sintoma em causa, uma vez que a matriz que propiciou tantos despautérios persiste incólume na estrutura que aí está, pronta para ter continuidade a uma simples substituição presidencial.

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