Posto que, na
modernidade, a hipocrisia se estabelece enquanto estruturada, como elemento
estratégico que torna possível a continuidade de relações assimétricas entre
países e mesmo nas questões da cidadania. O epicentro de tal arranjo, o seu
estabelecimento de forma clara, se dá com o final da segunda guerra com a
imposição de uma versão logicamente insustentável, na qual os perdedores foram
demonizados e os vencedores endeusados e entronizados em santuário inconsútil. Uma
história recontada de forma eivada de abusos, na qual se incutiu na memória
social do mundo um Hitler mefistofélico em todos os sentidos e, ao mesmo tempo,
se fez esquecer quem autorizou o lançamento de duas bombas atômicas sobre as
cidades nipônicas. Óbvio que a justificativa de encurtar o sofrimento da guerra
é conversa para alices mais desavisadas que a original. Creio que este é o
marco fundador que estabelece e entroniza a hipocrisia enquanto categoria de
sobrevivência (diplomacia possível), uma válvula de escape a impasses
incontornáveis, diante forças extremamente díspares. Destarte, seguimos, até
uma ruptura, uma existência sob o signo e o jugo do nojo.
O sistema
capitalista tem regras que, apesar de modificadas pari passu ao avanço das forças sociais, mantem como eixo basilar o
crescimento da produção e dos mercados, ou seja, a expansão capitalista. Tal
desiderato (ou condenação) é inerente ao próprio sistema e independe de
comandos determinados.
A abolição
(embora tardia) da escravidão no Brasil ocorreu muito mais em função de
pressões do capitalismo internacional nascente (capitaneado pelos ingleses) do
que por força dos sentimentos humanitários da princesa Isabel, a redentora. A
escravidão se tornou inviável, não em função de derramados discursos de cunho
sentimentaloide, mas sim pelo fato de que era um entrave à expansão do
capitalismo, posto que contrariava a sua lógica de previsão e controle do
processo produtivo.
O processo de
descolonização no continente africano não resultou da tomada de consciência
humanitária do reconhecimento de direito e merecimento de respeito à
autodeterminação dos povos, mas sim com a implementação de novas formas, mais
eficazes, de exploração de riquezas pelo mundo afora, sem a necessária ocupação
territorial que onerava o capital desnecessariamente. Assim como não há almoço
grátis, não há um pingo de sentimento nesta carruagem povoada de lógica
irreformável, máquina desgovernada, com o feio nos dentes, que constrange a
ricos e pobres aos seus ditames de lucro. Mesmo Bill Gates e outros com fortunas
maiores não contrariam as suas regras gerais sob pena de sofrer a decadência
econômica.
Nesta sua nova
fase, mais uma vez por rotas transversas, o sistema hegemônico passa a promover
um combate à corrupção, post que este, alastrado pela periferia do sistema
produz entraves para a livre expansão ao seu livre curso. A lógica do capital,
apesar de objetivar o lucro não comporta o roubo puro e simples como uma de
suas prerrogativas. O suborno de empresas e governos, no âmbito de
concorrências transnacionais, está na contramão da lógica dos negócios, posto
que o sistema não se reproduz através de crimes, pelo menos não dos crimes
capitulados nos códigos criminais da quase totalidade do concerto das nações.
Hoje, no Brasil,
nos rastros retumbantes de escândalos nunca vistos, através de crimes nunca
ousados, nos deparamos com a sociedade brasileira extravasando uma indignação
nunca antes registrada. O debate renhido e ainda incruento se dá em torno de
uma operação denominada Lava-Jato, que teve como ponto de partida atos de
corrupção na Petrobras e que se espalhou pela máquina administrativa estatal e
que agora coloca no epicentro o ex-presidente Lula, como principal suspeito de
ser o chefe de uma quadrilha com atuação sem precedentes na história do mundo
dito civilizado. Por ter como alvo a elite no poder (empresários e políticos),
as investigações e os julgamentos sofrem uma extrema e indevida politização de
lado a lado que atiçam paixões desenfreadas e argumentações alucinadas. Neste
momento, o debate está centralizado em torno do poder, no afastamento da
presidente Dilma e convocação de novas eleições. Tal debate tem criado o mito
de que a eleição de um novo presidente da república purgará a sociedade de seus
principais males. Vã demagogia! Ingênua quimera!
Os problemas do
país são mais sérios e mais profundos do que promover eleições e empossar eleitos,
pois reside no que, como e para quem irão governar. Faz muito tempo que a
máscara caiu e que o poder é adquirido e sustentado tão somente através de
fisiologismos escancarados. Faz muito tempo que a escolha de um ministro não
recai sobre um cidadão preparado para desempenhar as funções da sua pasta, uma
vez que um ministério representa a adesões e apoios ao que eles denominaram de
base parlamentar. Esqueceram que o Ministério da Saúde existe com a finalidade
precípua de organizar a prestação de serviços de saúde para a população e não
para manter um presidente com maioria no Congresso. Dessa forma o Estado passa
a atender as suas necessidades em detrimento da população em geral, ou seja,
deixa de administrar a sociedade para se dedicar a cevar a elite ora no poder.
A primeira e
mais aguda perda, é a autoridade moral. Sem parâmetros éticos as nossas elites
não se apercebem que perderam há muito os referencias que norteiam uma
sociedade minimamente estruturada em igualdade e justiça. A crise moral que recobre
os poderes da República e as elites nacionais é muito mais danosa e
intransponível do que a crise econômica de singular crueza.
Foram tantos os
séculos e tão fartas as doses que as seringas da hipocrisia irrigaram as veias
das nossas elites a um ponto de esbarrar numa overdose, ponto sem retorno no
vício. O patrimonialismo, paulatinamente estruturado, atingiu um limite em que
sufoca a sociedade com suas demandas por privilégios cada vez mais abusivos.
Perdeu-se a noção da razoabilidade na medida em que tudo, qualquer
monstruosidade pode ser justificada. Vivemos num país em que cartorialmente as
justificativas não necessitam ser minimamente racionais ou razoáveis, pois se
esgotam na própria justificativa. Neste sentido, por exemplo, um juiz concede um
habeas corpus a um traficante sob a justificativa de que as celas da Polícia
Federal não reúnem condições dignas de mantê-lo. Espantosamente a comprovação
de que todas as demais celas do país são piores não levam os nossos juízes a
mandarem soltar todos os presos do Brasil. Dessa forma, juiz pode justificar
qualquer coisa, pois o que se requer é uma justificativa, não importando o seu
conteúdo.
A assimetria
está incorporada ao nosso cotidiano de forma tão empedernida que mesmo cidadãos
bem intencionados não mais conseguem distinguir o justo do injusto, o legítimo
do privilégio, o honesto do desonesto. Difícil, senão impossível, encontrar algum
nicho de poder que não esteja eivado de privilégios. Tornou-se lugar comum,
mesmo no STF, soluções e decisões lambuzadas de corporativismo.
Vivemos um
simulacro de lados ideológicos, pois que quaisquer ideologias são tragadas
inexoravelmente por uma realidade estruturada que as antecede e as conformam.
Em verdade, exercer o poder no Brasil, independe de ser de esquerda ou de
direita, pois a estrutura sobre a qual o poder é exercido tem forma própria
onde prepondera um patrimonialismo que se aprimora a cada dia e que tem como
corolário a garantia de impunidade para os seus reinóis ridículos. Tal situação
pode ser comparada ao do usuário de cocaína que, uma vez viciado, necessita aumentar
paulatinamente a dose, até a overdose fatal. Da mesma forma, as nossas elites viciadas
no mando indiscriminado, necessitam expandir as suas carreirinhas de
privilégios mesmo que sabendo que a dose fatal está se aproximando
inexoravelmente, uma vez que faz tempo o limite do tolerável foi ultrapassado.
Dessa forma, por
mais que as paixões incendeiam os debates na atual conjuntura, por mais que o
Partido dos Trabalhadores tenha institucionalizado uma política quadrilheira no
interior do Estado, circunscrever a crise a tais sucessos é transformar
sintoma em causa, uma vez que a matriz que propiciou tantos despautérios persiste
incólume na estrutura que aí está, pronta para ter continuidade a uma simples
substituição presidencial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário