domingo, 20 de março de 2016

A lularização da política

Acho que no meu DNA veio apragatada uma deformação que até hoje carrego como fardo e indisfarçável orgulho, qual seja, um profundo sentimento de solidariedade com o povo simples do meu país. Na outra ponta, cultivei um robusto nojo pelas elites insensíveis, às quais o povo ingenuamente entrega os seus destinos indefesos, grávidos de fragilidades. Com estas duas certezas e nada a temer, foi que forjei algumas convicções inabaláveis que têm norteado os meus pensamentos e as minhas revoltas. Uma delas, que guardo desde menino, é o sentimento de que presidir dignamente o Brasil, implica, para este presidente, se conscientizar que a sua própria existência não mais lhe pertence de todo. Mesmo porque, depois de tamanha honra, pode morrer apaziguado com os seus demônios, as suas incertezas e os seus prováveis erros. Não vejo a necessidade de se conceder (menos ainda em lei) nenhuma vantagem pecuniária a um ex-presidente, uma vez que este é que deveria se sentir extremamente grato ao povo por ter lhe confiado tamanha honra e mesmo o incalculável prazer de realizar tal missão. Não vejo porque um presidente aposentado deve necessariamente ter uma vida de facilidades que a maioria dos trabalhadores do país sequer ousam sonhar. Acredito que o respeito e o reconhecimento do povo seria o maior estipêndio e que suficientes seriam para levar o restante da vida. Creio que falo mais em felicidade do que em poder, porque acredito que todos nascem com a missão de buscar a felicidade, mas o endereço da mesma se mostra variável, fugidio e enganador.
Apesar de nunca ter interesse por política partidária e muito menos militância em partidos políticos, nos seus primórdios (até a eleição do Lula à presidência), o Partido dos Trabalhadores me pareceu uma possibilidade de fazer política com ética e quebrar o fazer rasteiro e maquinal dos políticos tradicionais, que aprofundavam a demagogia, o clientelismo e a corrupção. Tal quadro de degradação não torna o país apenas mais pobre, apequena os seus costumes, os seus valores e a sua cultura. Infinitamente pior do que o roubo da coisa pública é o roubo do orgulho, a frustração coletiva de não ser respeitado exceto pela galhofa do futebol e do carnaval.
Lembro que o PT, para manter uma postura ideológica irredutível, assumiu posturas na contramão do ganho político que se traduzia apenas em voto quantitativo, vazio. Perseverou com atitudes corajosas, como expulsar dos seus quadros políticos eleitos, decisão jamais assumida por partido algum, pois, para a politicalha, ao contrário, todos os votos são bem-vindos. Com esta estrutura consolidada e por consequência, o PT passou a ter uma militância diferenciada, pessoas abnegadas que se predispunham a trabalhar gratuita e alegremente para a consecução de um país melhor, menos viciado, mais igualitário.
A frustração de tantos sonhos – o derruir de tantas esperanças – veio em galope avassalador, logo após a eleição de Lula à presidência do país. Os primeiros passos do governo petista representaram claramente a negação de toda a sua trajetória até então percorrida e os mais radicais assim o entenderam, abrindo um fosso e provocando feridas que nunca vão cicatrizar. Outros, mesmo em desacordo com as políticas desenvolvidas, se agarraram a sonhos de mudanças que jamais se concretizariam, pois que abandonadas pelos aiatolás. Uma vez no poder e controlado por poucos, o PT sofreu mudanças que o desfiguraram até como um partido tradicional. Numa reviravolta assombrosa – da água para o óleo – a sua nova identidade se forjou como uma agremiação de cunho empresarial, imperial e sem laços afetivos com a militância que passou a ser profissionalizada através do poder do Estado, direta e indiretamente às custas do povo. Essa nova relação transformou o PT num partido inorgânico, extremamente cioso da sua estrutura organizacional a imprimir relações de mando e obediência. O antigo militante petista, orgânico, obedecia ao seu credo ideológico e o novo passou a prestar obediência ao patrão que lhe paga o salário com o dinheiro do povo. Um partido que interdita a democracia interna, não respeitará a democracia nos embates com os adversários. Nesse mesmo movimento, substituiu a sinceridade dos projetos por máscaras de marketing.
As políticas populares incrementadas pelo PT, não se originaram na preocupação com as necessidades básicas do povo, mas numa relação de custo-benefício. O Fome Zero não foi instituído em função do povo, mas dos votos. O Bolsa-Família, idem. Este tipo de arapuca é muito antigo, remonta a Idade Média e foi aperfeiçoada pela Igreja Católica, sob a justificativa de exercitar a caridade. Pede aos ricos para dar para os pobres, mas escamoteia a existência do intermediário que fica com a parte do leão. Claro que para ter continuidade na recepção de valores, se vê na contingência de apresentar alguns préstimos (asilos, leprosários, alimentação, etc.), substancialmente menores do que foi arrecadado. Claro está que a montagem de tal estratagema não obedecia aos ditames da caridade, mas tão somente ao enriquecimento. É muito triste, mesmo patético, constatar que o povo simples do país acredita numa generosa preocupação com os mais desvalidos. Guardo esta empulhação como mais perversa do que a roubalheira desenfreada, levada a cabo pelo PT, que cerceou a educação, que matou doentes, que desrespeitou a sociedade (principalmente velhos e crianças desprotegidos), e que, enfim, nos apequenou enquanto nação.
Creio que os ainda hoje petistas, apesar dos profusos e degradantes descalabros, não conseguem entender a extensão e a profundidade dos danos causados ao país. Estes sinceros retardatários enxergam mais os seus desejos do que a realidade em exposição – fratura exposta. Acegados de entendimento continuam cultuando o PT como um partido de esquerda, e não uma instituição regida sob uma estrutura sindical deturpada. Se autoafirmar como sendo de esquerda, qualquer partido pode fazê-lo, mas se não preencher a palavra com a concretude dos atos e dos exemplos, nada mais será do que o eco da palavra a embalar enganos e desfigurações de horror e náusea.
Capitaneando um simulacro de partido político, a nomenklatura petista, sob o comando e jugo de Lula, se lançou com iracunda, soberba e inaudita audácia num plano de açambarcar o país através do total aparelhamento do Estado que, após a sua consecução, lhe dariam as condições de manipular o setor privado. Tal arquitetura, arrogante e perniciosa conseguiu o feito inesperado de escandalizar as elites empedernidas, useiras e vezeiras em negociar o futuro da nação na bacia das almas.
Ironicamente, a patranha quadrilheira, que desfilava em céu de brigadeiro, cometeu talvez o único erro imperdoável, roubou de rico! Tradicionalmente, no Brasil, sempre foi permitido (em formato patrimonialista) o roubo da coisa pública, sob a rubrica de dinheiro de ninguém, pois que de difusa titularidade. Desta forma, roubar a Previdência, a Saúde, a Educação, os Correios, o BNDES, a merenda escolar, etc., se tornou uma rotina devidamente banalizada, quase que consagrada como uma legalidade. Eis que os quadrilheiros do PT (e agregados) esqueceram o beabá da informal criminologia e assaltaram a Petrobras que, pela sua importância no imaginário popular, nos faz esquecer que é uma empresa de economia mista e, para pior dos males, com capital aberto. A atuação no mercado de capitais implica a submissão a regras rígidas, mais inescusáveis do que a Constituição do país, pois que estão atreladas às regras gerais do capital internacional. A atuação rapineira na Petrobras resultou num furto direto a investidores ricos e poderosos, dentre eles grandes empresas e fundos de diversos países. Claro e evidente que não se rouba neste patamar impunemente. Este acidente de percurso deslanchou o encadeado de incidentes criminais que transbordaram na mídia e, pelo fenomenal volume, assolou o PT com a potência de um tsunami equatorial (seja lá o que signifique).
Diante de tal descalabro, é perfeitamente compreensível a atuação da força-tarefa da Lava Jato (cuja força é fornecida pela fragilidade da situação criminosa), em que um juiz de primeira instância, com perícia e competência exemplares, está conseguindo o que nunca dantes na história deste país o Judiciário foi capaz de produzir: colocar personagens ricas e poderosas atrás das grades, em quantidade espantosa e inusitada.
No capítulo do cerco da justiça ao Lula, vamos encontrar o país convulsionado por legítima indignação a enfrentar um governo agonizante, porém renitente em reconhecer seus erros e crimes. Agarrada aos fiapos de poder e legitimidade que lhe restam, a Dilma Roussef vem protagonizando cenas constrangedoras (para o decoro do cargo) e patéticas no atacado e no varejo, no público e no privado. Coerente com este pensamente degradado, a presidente Dilma se submeteu a várias ignomínias públicas, pois que o seu ideário político está contaminado pelo pensamento do seu mentor e mestre. Arrastou perante toda a sociedade uma farsa mambembe, de onde escorriam as mentiras que proferia em cadeia torrencial, uma tentando consertar a anterior desmascarada.
Desta forma, diante deste cenário dantesco de terra arrasada e de consciências estupradas, retomo nostálgico ao tempo em que, menino, acreditava que a maior e mais valiosa oportunidade que poderia ser oferecida a uma pessoa seria assumir o mando do país e ser digno de tão especial e honroso encargo.

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