sexta-feira, 1 de abril de 2016

Além do razoável

Vivemos tempos ensandecidos, onde pululam pensamentos e discursos nada razoáveis. Convencer uma população bestializada, analfabeta e sem cidadania de que algumas mentiras representam a verdade verdadeira é tarefa de fácil elaboração e execução, principalmente quando se tem à disposição poderes e verbas quase que inesgotáveis. Convencer a maioria do povo de que Lula é um cidadão de vida despojada, um brasileiro comum ou que os governos do PT priorizaram os mais pobres não requer maiores malabarismos de criatividade mesmo para marqueteiros medíocres e de pouco talento estético-cultural. Mesmo porque o marketing, grosso modo, é a antítese da arte, a negação da criatividade verdadeiramente libertadora, pois que tem por finalidade o engodo que objetiva o aprisionar as suas vítimas.
Sinceramente eu entendo as ações (mesmo as injustificadas moralmente) dos chamados mortadelas, um bando de manipulados através de cargos no governo ou simplesmente das migalhas distribuídas nas manifestações públicas, tipo um desarrazoado e patético “não vai ter golpe”. Pelo avesso, também com sinceridade, não consigo entender (muito menos justificar) a postura de pessoas que têm discernimento de sobra para olhar a realidade e ver que está exercitando o cinismo cívico ao fingirem enxergar uma realidade que não existe, que nem dúbia é.
Pego como exemplo, não por acaso, mas pelo grau de exposição nessa lide tragicômica, a figura de Chico Buarque, dentre tantos outros que podem se assemelhar, para tecer algumas considerações de cunho analítico-prospectivo. A verdade é que o Chico é o maior compositor popular nascido neste país. Apesar de ter criado canções extremamente elaboradas e abordado temas de difícil curso, conseguiu seduzir o seu povo, com formação deficiente, de uma forma avassaladora e merecida. Talento, sensibilidade e bagagem cultural. Não há marketing que consiga transformar em sucesso uma letra que ousa usar a palavra escafandrista!
Acusações maldosas, resultantes de compreensível indignação, especulam que a sua solidariedade ao PT e ao Lula, existe em função de vantagens auferidas junto aos governos petistas. Filho de classe média alta ganhou dinheiro suficiente para levar uma velhice confortável e ainda goza de prestígio que lhe possibilita ganhar outro tanto. Heloísa tem todos os méritos para ser Ministra da Cultura no Brasil ou na França e se aqui o foi, são circunstâncias que desconheço e não tenho porque colocar em dúvida o processo que a conduziu a tal cargo. A Lei Rouanet é um balcão de atendimento caótico, no qual, como tudo no país, sempre tende a resolver as opções pelo lado mais fácil e óbvio: prioridade aos mais famosos, mesmo não necessitados.
Chico, por toda a sua vida adulta esteve exposto ao público e, apesar de manter discreta privacidade, foi alvo preferencial da mídia. Por todo este tempo nunca demonstrou nenhum desvio de caráter e sempre manteve uma postura sincera, mesmo descontentando alguns. Nunca se mostrou gratuito.
Diante do acima analisado, por razoável, não há como enquadrar Chico Buarque como um lobotizado mortadela ou um reles aproveitador das tetas de governo ou, ainda, um porralouca ideológico. Não faria sentido, já que estamos observando a realidade o mais aproximado do que ela é. Há que se observar e reconhecer que, ao longo da vida, ele foi, por várias vezes, tentado a aderir (existem formas discretas), em troca de enormes facilidades e não o fez.
Então, qual mistério, qual razão para nos depararmos com este artista singular defendendo publicamente um governo sabidamente corrupto e um líder a meio caminho da prisão por crimes de variados calibres? Os méritos pessoais do Chico são muitos, sempre foi exigente com suas obras, coerente com suas ideias e meticuloso no detectar e expor os maiores e menores erros de um regime antidemocrático por definição e autoritário por natureza. É neste ponto que a minha perplexidade se agudiza. Como este exímio especialista não farejaria a negociata rasteira, a esperteza covarde e a flagrante traição ideológica levada a cabo pelo Partido dos Trabalhadores? O que o leva a acreditar num golpe da direita contra um partido de esquerda no poder? Me estarrece acreditar que Chico Buarque crê (e acredito que assim o é) que o PT é um partido de esquerda realmente, nas suas práticas de governo. O PT ensaiou tais aleivosias antes de assumir o poder e logo em seguida mergulhou na amorfia partidária reinante, de direita, corrupta e insensível. Os fatos demonstram que em treze anos de exercício do poder, o PT nada mais fez do que dar continuidade à política neoliberal, acrescentando apenas um ostensivo aparelhamento do Estado. Em treze anos de poder jamais apresentou um projeto (nem de esquerda ou reformista que fosse) próprio para o país e viveu de ensaios erráticos e de improvisações nas quais predominavam objetivos eleitoreiros. Como agravante, aprofundou e sistematizou a corrupção institucionalizando o crime enquanto política de Estado.
Sabemos que a nossa elite não enxerga o povo do país senão enquanto massa de manobra, bois a caminho do matadouro. Assim continuou nos governos do PT e as ações sociais não mantinham preocupações socais, mas sim com o aumento do cacife eleitoral traduzido em votos. As verbas usadas nestes programas sempre foram imensamente inferiores às destinadas aos banqueiros e aos “empreendedores” ricos e amigos.
Conheci muitos artistas e pretensos artistas que nada mais aspiravam da vida além de uma carreira de sucessos, o que implicava em muito dinheiro e vida mansa. Nunca foi o caso do Chico, que sempre demonstrou sincera preocupação com os rumos deste país e os que duvidam atentem para o fato de que a sua obra é um eterno e obsessivo recontar da vida do povo. Ele emprestou a sua fala aos silenciados (não só aos exilados políticos), aos excluídos e aos simples de coração.
Prefiro acreditar, com alguma razoabilidade, que ele foi tragado pelos seus desejos e estes lhe suplantaram a racionalidade. Creio que ele observa o PT ainda como aquele partido combativo, heroico, intransigente em eterna pugna por justiça social. Nega-se a acreditar que a última oportunidade estiolou-se diante das opções burguesas de líderes que prezavam mais o consumo conspícuo do que o cheiro do povo, que sempre exala suor e sangue, êxtase e agonia.

O horror maior pode estar por vir em breve, e os seus desejos frustrados se transformem em pesadelo, caso sejam comprovados os crimes hoje investigados. O nefando bafo da perversão de se saber instrumento que forneceu sobrevida a estas lideranças que a aproveitaram para obstar ou inibir a descoberta de crimes perpetrados contra o povo, usando exatamente a força que a cidadania confere aos seus mandatários. Para alguém honesto, não concebo panorama pior.

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