quinta-feira, 9 de maio de 2013

"BRONCOS"-In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante

BRONCOS

In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante


São eles, os broncos.
Homens de raça difusa, almas simplórias, crenças rudimentares, religião sincrética, e que têm a padronizá-los o descarnado forte advindo do comum labor ríspido do machado, do azafamar ininterrupto e sufocante do traçador manual, sob um sol de trópico, untuoso de maleitas.
Cabras desabridos de gestos e falares intermitentes, escudados na braveza vera e prática, amostrada e provada dia pós dia, tormento pós-tormento, afora a inocência violenta a requerer superação.
São os filhos bastardos de uma nação madrasta. São os pais extremosos na rispidez dos gestos – que passam pela sincera singeleza da ternura – e são, ainda, os desbravadores dos trieiros suados, ensanguentados e povoados de serpentes e mal assombrados.

– Menino, a-hum! Dizque cascavel, num erra bote. É bicho de pulo seguro e certeiro. Tem ‘té quem bote fé e afirme, que se uma errar o bote, é bem carecido dela morrer de raiva!

Brabos e broncos, os únicos, os escolhidos pelo destino desatinado, apartados pela sagacidade dos capatazes e efetivados pelo eito desumano, destorroador de peles crestadas e mutilador de mãos, transformadas em feixes de calos, transformadas em torqueses de cartilagens.
São eles que, aos bandos – arrebanhados nos lares erráticos –, irmanam-se na companhia momentânea, equilibrando-se em carrocerias de caminhões “toreiros” e desandam um destino igual e nunca monótono. Do país, são os filhos intimoratos tão agigantados quanto frágeis. Não temem os perigos reais, que são enfrentados diuturnamente com desabrida valentia, mas se apavoram com o surreal de estórias do outro mundo. Guardam nas suas almas simples a dicotomia de adultos e meninos. Fortes e ingênuos, mas para sempre destemidos. Firmam seus credos em crendices e respeitam o preceito de não usar camisa pelo avesso e de não ferir árvore onde está pousada a acauã.
Consomem crenças infantis e mitos robustos, à falta de esperanças ou gestos.
Brutos e ingênuos, ferozes e ternos, insensíveis e extremosos, eles são os tenazes e temerários madeireiros do sertão goiano.
Percorrem grunas e cafundós, terras e infernos, desde que a madeira seja farta e o contratante decida.
Defendem subsistência, algo de sustança nos buchos protuberantes dos filhos e são moucos – ou não entendem – para as potocadas sobre defesa ecológica. Acreditam – pela vastidão e abundância – que as matas goianas serão eternas, feito o Pai Eterno.

– É mato, menino, pra machado nenhum dá no fim. Ora, se!

São eles que tomam achego, desincomodados e afeitos aos azaranzados do destino. Armam redes, erigem taperas provisórias, constroem jiraus e desafiam o mato com desassombro desbravatoso.

– S’incomode, não. ‘Manhã de manhãzinha nóis vê isso. Uma noite só, enfadado como nóis tá, dá pra drumi inté dependurado pelos ovos... Des’ que tenha adonde punhá as mão...

A dieta uniforme recomenda arroz / feijão / toucinho / farinha, como básica, complementada com o que do mato bravo possa ser arrebatado: jerimum, melão, pimenta, palmito e mais a caça e a pesca conseguidas nos domingos extraviados por meu Deus.
Os farnéis são individuais e cada qual prepara e consome apartado dos demais. Fazem ritualmente quatro refeições diárias, pois que o estatuto do lanche inexiste.
Brincam bruto, que não tiveram tempo de sofisticar os escassos brinquedos da infância. São desabridos e diretos, já que não conheceram meios que refinam e amansam a malícia. Rígidos, não dissimulam ou admitem dissimulações. Não encontraram o seixo ideal para afiar o gume e a ponta da faca da maledicência. Não dissimulam e não maldizem a sorte.
Brincam – quando brincam – inteiros, que pagode não é carecedor de mascaramentos ou intenções estreitas ou estrangeiras.
Careta e careteio.
Brincam de brincar saudades, tristezas, sorrisos e gestos.
Não raro, à noite (e a noite é sempre precoce pelas bandas de Guapó, Troca-Tapa, Ourominas, Paranã, Chapada dos Veadeiros, Araguaína – tudo mundão besta, oco de mundo), ante o fogo de lenha chorona e sob estrelas – subversivas de tão brilhantes – a prosa se espicha, os causos se sucedem e a melancolia invade e abarca insidiosa os corações.
Impensável e inadmissível o choro, proibida a confissão de fraqueza.

– Da goela, num passa... Esse fi duma égua!

Não há lamento ou soluço – acessórios supérfluos – mas apenas uma tristeza sólida, palpável que o sol seguinte, indiferente e burocrata se encarrega de tanger e expatriar.
Hora de trabalhar, de suar eitos desconformes, de bater ferro e não se incomodar com as treitas inesperadas ou as armadilhas do destino.
A fatalidade do peão madeireiro é a sua patente que, de comparsaria com a sua macheza temerária, requer espaço para existir livre, mas não um existir de bicho.

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