quinta-feira, 9 de maio de 2013

"FRONTEIRA DO IRREAL" -In “Antologia dos Esquecidos 1” – Marcelo Cavalcante


FRONTEIRA DO IRREAL



O descortinar do dia é neblinoso por sobre os contornos acidentados da Zona da Mata mineira, como a reafirmar a perene gravidez da natureza por toda a região.
Obediente ao ritmo progressista de muito trabalhar, aliado ao capricho metódico dos donos, a fazenda Miraflores é de uma limpeza e organização exemplares, em todos os seus desdobramentos e minúcias. O lugar expõe uma aura de mansa tranquilidade apesar da intensa e profícua faina.
Ex-funcionário de banco, Augusto Matos, ao ver a fortuna lhe sorrir em forma de sorte grande em loteria governamental, aproveitou a oportunidade do falecimento do velho Elias Alves, e adquiriu vantajosamente a fazenda aos herdeiros, todos moradores em metrópoles.
Deu-se aí, a grande transformação de Miraflores que, no transcurso de quatro anos, reformou-se completamente, ganhando ares modernos e tornando-se atividade rendosa.
Homem prático, com instintos de quase usurário, portanto isento de dúvidas ou crises existenciais, Augusto Matos não poderia nem pretendia justificar ao seu íntimo, aquela reviravolta que o andava a influenciar, ligando-o a histórias do tempo do ronca. De positivismo crônico, adquirido em cepa camponesa e solidificado nas lutas pela subsistência, era o produto acabado do que os sociólogos e intelectuais convencionaram chamar de pragmatismo.
Sete anos de casado com Débora dos Anjos e amealhara conquistas e sucessos merecidos além, é claro, do casal de filhos ambos saudáveis e irrequietos.
De forma desusada, macambúzio, Augusto Matos percorre a manhã, a cumprir funções cotidianas. Irrequieto, pensativo e cismarento, tenta decifrar o enigma que o molesta. Afogado em dúvidas tenta um jogo lógico, na esperança de separar o sonho da realidade.
A noite anterior, em seu desenrolar de reinações, sufoca-o em imprecisa angústia.
A coriza não justifica o resfriado nem o abatimento que lhe invade a alma. Inquieto, atenta aos contornos das sombras nunca antes observados.
Com não menor ansiedade, observa a casa típica de fazenda, espaçosa e confortável, apesar do estilo rústico duvidoso, como a esquadrinhar o montante de dúvidas e inseguranças.
De forma atípico, fica a remoer e bem comprovar a insensatez de suas resoluções.
Toda a estranheza tivera início na noite anterior. Noite clara. A lua buchuda o encontrou na sala a coordenar idéias de prosperidade e melhorias a empreender nos pastos mais distanciados. Num tempo impreciso, escutou (ou julgou escutar) nitidamente uma voz no quarto das crianças. Voz estranha, rascante, de homem, com acentuado tom gutural. Tenso, dirigiu-se ao quarto dos filhos e os foi encontrar brincando normalmente.
Cismado, retornou à sala.
Entre comentários sobre mesquinharias do cotidiano, recusou o café oferecido pela esposa e recurvou-se sobre papéis abarrotados de planos.
No ventre da noite impúbere, Augusto serpenteou por sono agitado. Uma espécie de pesadelo em que tentou desesperada e inutilmente despertar. Renhir de vontades e o despertar brusco, estonteante.
Observou o quarto em derredor e inquiriu vibrações febris e ouviu vozes indefinidas, inidentificáveis, que não adivinhou a procedência.
Controlando-se, rebuscou forças e coragem para levantar-se. Silencioso e tenso inspecionou a casa. No quarto dos filhos, totalmente às escuras, distinguiu um rebrilhar avermelhado e inconsistente.
Novo barulho o levou a desviar a atenção e o fez retornar ao próprio quarto e foi com desafogo que encontrou Débora, sentada na cama, cabisbaixa, o quarto inundado de luz.
Comentou sobre a estranheza dos acontecimentos até que viu, incrédulo, a esposa elevar o rosto congestionado e lentamente, como mastigando as palavras, falar aquela voz estranha, grossa e gutural.
Desmaiou.

*      *      *      *      *

Dos insólitos e inexplicáveis acontecimentos daquela noite medonha, Augusto Matos adquiriu uma desusada nervosia de modos, tão flagrante que aconteceu despertar olhares interrogativos até das crianças.
Passa o dia cismarento e, o que mais o inquieta é a absoluta tranquilidade da esposa no seu proceder cotidiano.
Assaltam-no dúvidas as mais diversas, desencontradas e descabidas.
Com extrema facilidade reconstitui todos os acontecimentos esdrúxulos e profanos. Hipoteticamente, chega a admitir que tudo não passara de um pesadelo anormal, inextrincável.
Com a aproximação da noite, acentua-se a angústia ante uma não definida expectativa. Ronda, inquieto por toda a casa, metediço e inquiridor.
É neste estado aniquilador de tensão que decide manter vigilância, enfurnado na madrugada.
Com o revólver sob o travesseiro, fumando descontrolado, espreita sons e espera o imponderável. O arrastar da noite é lento e desigual em sua faina metódica.
De chofre os sons espocam nítidos e inconfundíveis, no quarto das crianças.
Armando-se com ânimo forçado e empunhando o revólver, tateia o corredor penumbroso. Ao transpor a porta, no quarto dos filhos, prende-se imerso numa fumaça extremamente densa, impregnada de um cheiro adocicado e enjoativo. Observa atentamente na direção das camas e fica a mirar umas luzes extremamente vermelhas. Tomado de intenso impulso, recua apavorado e acende as luzes. Apoplético e eriçado de horror, comprova o intuído: as luzes são os olhos dos seus filhos, agora fachos apavorantes.
Foge enlouquecido, retornando ao próprio quarto onde encontra a esposa sentada naquela imobilidade patibular. Descontrolado grita, tentando desvencilhar-se do sonho ou reaver a neutralidade do real. Desesperado, tenta escapar às teias insidiosas do pesadelo.
Os gestos pausados de Débora contrastam com o seu riso maligno e a voz estranhamente grossa e antinatural.
Ensandecido, Augusto Matos, dispara a arma à queima-roupa, às cegas. Assiste ao lento esmorecer da esposa e observa o sangue escorrer e formar a mancha enorme no lençol.
Quando se vira, está sob a observação dos olhos inumanos, dos próprios filhos. Ante aqueles olhos de fogo, preme o gatilho até descarregar a arma.
Em total desarranjo, sai da casa aos gritos e, às cegas, instintivamente abandona a casa.
Ganha o rumo da cidade.

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