quarta-feira, 8 de maio de 2013

Religião S. A Trampolineiros da fé alheia - in Antologia dos Esquecidos 2



Religião S. A

Trampolineiros da fé alheia


"Dou uma rápida consultada na Magna Carta, mais precisamente no tópico que me garante liberdade de consciência e de crença e observo que o texto constitucional me assegura algumas imunidades. Constato que, na prática, a lei que versa sobre liberdade de crença religiosa é extremamente tolerante e permissiva, e que, sob a escusa de professar uma religião (mesmo suspeita ou improvável), existem possibilidades ilimitadas para se safar de toda e qualquer espécie de farsa e fraude religiosa que a fértil imaginação dos malandros for capaz de elucubrar. A aplicação do conto-do-vigário e outros assemelhados implica estar incurso no código penal, ao passo que esse mesmo expediente contra incautos sob a máscara religiosa, não possibilita qualquer risco legal. Basta o escroque proteger a sua traquitanda sob o vasto e indiferenciado manto da crença religiosa. Dessa forma, assim como esses igrejeiros pernósticos e os missionários arrumadinhos e bem alimentados têm o direito de promover ininterrupta e interminável pregação proselitista de suas crenças, eu também quero me reservar idêntico direito.
Rapaz! Esse negócio de crente está virando um negócio da China! Abrem-se mais seitas e igrejas que botequins por este país afora. O exemplo do bispo Macedo, que deixou de ser um mero funcionariozinho da Loterj para se transformar num rico comerciante de religiosidade, tem feito escola. A boa-fé do povo vai enchendo a sacolinha dos espertalhões, numa arapuca que pode ser comparada a tomar bala de criança ou esmola de cego. Tem líder religioso que vende fé com mais descuido e esperteza, que dono de pé-sujo vendendo cachaça falsificada. Tudo em nome de Deus e de Cristo, de Jeová e de Moisés, de Maomé, de Krishna, de Tupã, do Caboclo Cobra Verde etc. Tudo baseado numa teleologia improvável e inconsistente, que se traduz num bordão ideológico de que no livro sagrado (a Bíblia – novo e velho testamentos, no Alcorão, etc.) está a verdade definitiva, infalível e sagrada. É mesmo?
Sem fazermos alusões aos demais livros sagrados que grassam pelo mundo (e todos merecedores de igual respeito e credibilidade), este surto de nascimento de templos - com denominações as mais estapafúrdias - está baseado apenas nas diferentes interpretações da palavra sagrada. Este circo armado para enganar incautos pode ser descrito numa farsa barata na qual parte-se do (pré) conceito de que no livro sagrado (a palavra de Deus) está a verdade absoluta, mas - e em toda enrolação tem um mas - os demais líderes religiosos (pastores, bispos, padres, diáconos, mulahs, profetas, promesseiros, etc.) estão equivocados e apenas a seita que acabei de criar tem a verdadeira interpretação da palavra sagrada. Desta forma, vinde a mim os ingênuos de coração, pois deles não será o dinheiro curto e precário que ganham com o suor de cada dia, em seus ofícios dificultosos. Formas de arrancar este dinheiro são fáceis de inventar e vão desde o dízimo, ao comércio livreiro, passando por toda uma produção e venda de verdadeiros kits onde o kitsch profano-religioso é abundante. É recomendável, ainda, gravar um CD, contendo alguns hits melosos, previsíveis e bem idiotas, com a interpretação de uma popozuda ou de um andrógino destes que se vendem por qualquer dinheiro. Isso é dinheiro garantido em caixa e o Deus Krioerth, em sua magnificência, necessita de numerário para que os seus krioerths-piás (seguidores do primeiro estágio) levem as suas santas e divinas palavras a todos os homens. Como vemos é um Deus vaidoso, que quer desbancar os outros das paradas de sucesso. Um Deus que tem a obsessão de provar aos homens, estes serezinhos insignificantes, que ele existe e deve ser respeitado e até temido.
Neste ponto da exordial seria de bom-tom alguém questionar a fragilidade da condição existencial humana, principalmente sob os aspectos simbólico-espirituais. Como a raça humana, após uma caminhada que varou séculos, chegou a tal ponto de obscurantismo?
Nas sociedades primitivas, onde o drama humano era a sobrevivência física dos indivíduos contra as intempéries e a fome, todos indistintamente tinham que prover a subsistência. Na falta de acumulação de riquezas ou outros “valores” abstratos, cada pessoa tinha que trabalhar. Uma vez criado e em condições físicas completas, a pessoa ia naturalmente tratar de desenvolver as atividades rudimentares que lhe garantiam a vida, ou seja, trabalhar. Um mundo que, na falta de valores diferenciados, todos trabalhavam. Num tipo de sociedade nestes moldes, não teria porque alguém vivesse as custas do semelhante. A justificativa para a existência de alguém diferente, que não precisasse trabalhar para sobreviver, só pode ser encontrada no fato de este alguém ter alguma coisa a oferecer aos demais. Oferecer o quê? Um produto que só ele é possuidor, um “conhecimento” que só ele tem, uma verdade que só a ele foi revelada. Neste momento surge o primeiro ser a viver do trabalho alheio, dando em troca um “conhecimento” aleatório, improvável e autoritário, uma vez que ao sabor da imaginação e interesses daquele que aufere vantagens do mesmo. Neste momento foi descoberta e fundada a diferenciação do privilégio que faz com que um, diferentemente dos demais, não tenha que enfrentar as feras bravias, as andanças necessárias à coleta dos frutos e a construção do próprio abrigo. Em troca fornece a manipulação de ter um poder de decifrar os sinais divinos na água, nos raios, nas vísceras dos animais, nos ossos jogados ao acaso, ou em qualquer coisa que a imaginação possa inventar. Qualquer invencionice basta, ante o temor ao desconhecido.Neste exato momento foi fundado o estatuto da vagabundagem plena, criou-se o nicho que chocaria os atuais “colarinhos brancos” bem cevados com o produto do trabalho alheio.
É exatamente esta trilha primitiva que tem sido percorrida até os dias atuais, por todos as religiões e religiosos que já pisaram a face dessa terra prenhe de místicas e desconhecimentos. A isto se deu nome de fé, e ter fé é um dos pressupostos do livre-arbítrio. No campo abstrato da fé, sob argumentos teleológicos, não há muito o que debater, pois com um obtuso e improvável “Deus quis assim” qualquer charlatão analfabeto se encafua na sua segurança ilógico-argumentativa, ante uma platéia que quer, acima de tudo, acreditar. O mundo tem fome de fantasias que o retira desta vil e perversa realidade que tem livre curso.
Ocorre que no campo prático, no plano material, muito pode ser criticado e questionado, sem a lengalenga besta da palavra divina, que deve ser respeitada, reverenciada e temida. Sob os aspectos materiais, sob os efeitos práticos, sob a intervenção na pura factualidade, podemos questionar as ações humano-religiosas de qualquer aparato de cunho religioso. Na prática, todos os que envolveram o povo na mística, se diferenciaram do próprio povo e passaram a auferir vantagens da mercadoria que comerciavam: a fé. Não existe uma religião sobre a face da terra que não apresentou este aspecto de exploração material ou de poder sobre as sociedades onde vicejaram. Modernamente, não existe nenhuma religião que não interfira no poder político-econômico, não há nenhum de seita e religião que deixe para o seu Deus, apenas os aspectos abstratos. Temos sempre a presença de um Deus viciado em mundanismo, excessivamente humanizado, que castiga, que quer ser reconhecido, que perdoa e que quer se apoderar do trabalho humano para produzir instrumentos (capelas, templos, sinagogas, catedrais, etc.) que sirvam para a sua glória. Que Deus é esse que necessita mostrar aos humanos, uma glória que se reduz a objetos (alguns caríssimos e suntuosos) de pura materialidade?
As iniqüidades cometidas pelos romanos foram superadas em muito pelo fantástico poder do catolicismo, que acolheu papas sodomitas, perversos e criminosos; que instituiu a inquisição onde queimou em vida um contingente enorme de inocentes em fogueiras públicas. Tudo em nome de um deus misericordioso. A argumentação cretina para justificar tais aberrações é a de que isto foram os homens que fizeram e não Cristo. Ora, são os homens que continuam tocando os negócios (rendosos, pois não?) da santa madre igreja. Observando as provas históricas de tantos crimes hediondos, qual a margem de confiança nos homens atuais? Grana e poder, um Vaticano-Estado, rico, com o Banco Ambrosiano fazendo suas falcatruas, protegendo nazistas e banqueiros criminosos.
Se no cenário do catolicismo a devastação moral é exemplar, nos demais ramos do cristianismo a coisa não é menos deprimente e descaradamente cínica. Para que servem toda estas estruturas caríssimas, além de acoitar os profissionais da fé? Os diletantes, os verdadeiros pastores de igreja que tinham seus ofícios, que trabalhavam e, nas horas vagas gastavam o tempo com os seus ideais, foram raras exceções, que não existem mais. É sobre os seus cadáveres e suas vidas exemplares que os padres, bispos, papas, pastores, vivem a sorrelfa, sem ter que enfrentar a fila do desemprego, com a barriga bem forrada com o dinheiro suado e curto do povo trabalhador. Será que este povo não tem vergonha de tirar dos miseráveis o pouco que têm, para prover o próprio sustento, o luxo de suas vidas ou mesmo construir templos para construir moradias para um Deus, que por definição, é imaterial, já que onisciente e onipresente? Com que autoridade moral esses vagabundos, reiteradamente sabujos do poder, interferem na vida material, expropriam o suor dos pobres, em nome de um ser que não tem nenhuma das necessidades atendidas pela materialidade?
O mesmo papa que pede desculpas, em nome da igreja, pelos crimes perpetrados contra índios, minorias e mazelas outras, é a mesma figurinha que conspirou abertamente contra o socialismo e que agora se ressente do descaso com que é tratado pelo capitalismo (ao qual se aliou) em vias de globalização. Provavelmente, num futuro difuso, outro papa estará se dirigindo ao mundo fazendo novas mea-culpas contritas e sinceras. Mas a questão é, como pode uma instituição que está assentada (teoricamente) nos princípios da bondade para com o próximo, na tolerância, ter que pedir desculpas por crimes encharcados de maldades e intolerâncias?
Muitas das novas seitas que brotam como erva daninha pelos subúrbios e palafitas do mundo, são verdadeiras arapucas, especializadas em contos-do-vigário espirituais. Falam de dinheiro para Deus, como se este fizesse compras em supermercados ou mesmo freqüentasse shoppings repletos de roupas de marca. Tudo sob a total proteção da fria lei. No limite, Deus pode se expressar como a bondade humana. Necessariamente não é um ser, mas antes um ideal a ser atingido, e não tem sentido cobrar dízimo ou construir monumentos para uma idéia-conceito.
Hoje em dia, de forma corriqueira, o que se pode constatar é a profissionalização dos líderes religiosos que vivem às expensas do povo, tendo a executar esta tarefa, auxiliares submetidos a um assalariamento mundano.
Mexer com Deus é uma coisa complicada e explorar o próximo, crédulo e ingênuo, atiçando seus temores secretos, talvez o mais abjeto trabalho de magarefe, pois que carrascos dos sentimentos humanos.
Ora, se Deus realmente existe (o que não acredito), teria que ser uma coisa tão incomensurável, que, ao se revelar para alguém, este não teria mais os sentimentos mesquinhos da humanidade, entre eles, principalmente o sentimento da riqueza e do poder. O que se vê entre os bastiões da religiosidade senão enriquecimento e poder?
Como já observamos, não tenhamos dúvidas que a primeira pessoa a conseguir viver as custas de um trabalho não produtivo, foi o curandeiro, o místico da tribo."

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