Religião S. A
Trampolineiros da fé alheia
"Dou uma rápida consultada na Magna Carta, mais precisamente
no tópico que me garante liberdade de consciência e de crença e observo que o
texto constitucional me assegura algumas imunidades. Constato que, na prática,
a lei que versa sobre liberdade de crença religiosa é extremamente tolerante e
permissiva, e que, sob a escusa de professar uma religião (mesmo suspeita ou
improvável), existem possibilidades ilimitadas para se safar de toda e qualquer
espécie de farsa e fraude religiosa que a fértil imaginação dos malandros for
capaz de elucubrar. A aplicação do conto-do-vigário e outros assemelhados
implica estar incurso no código penal, ao passo que esse mesmo expediente
contra incautos sob a máscara religiosa, não possibilita qualquer risco legal.
Basta o escroque proteger a sua traquitanda sob o vasto e indiferenciado manto
da crença religiosa. Dessa forma, assim como esses igrejeiros pernósticos e os
missionários arrumadinhos e bem alimentados têm o direito de promover
ininterrupta e interminável pregação proselitista de suas crenças, eu também
quero me reservar idêntico direito.
Rapaz!
Esse negócio de crente está virando um negócio da China! Abrem-se mais seitas e
igrejas que botequins por este país afora. O exemplo do bispo Macedo, que
deixou de ser um mero funcionariozinho da Loterj para se transformar num rico
comerciante de religiosidade, tem feito escola. A boa-fé do povo vai enchendo a
sacolinha dos espertalhões, numa arapuca que pode ser comparada a tomar bala de
criança ou esmola de cego. Tem líder religioso que vende fé com mais descuido e
esperteza, que dono de pé-sujo vendendo cachaça falsificada. Tudo em nome de
Deus e de Cristo, de Jeová e de Moisés, de Maomé, de Krishna, de Tupã, do
Caboclo Cobra Verde etc. Tudo baseado numa teleologia improvável e
inconsistente, que se traduz num bordão ideológico de que no livro sagrado (a
Bíblia – novo e velho testamentos, no Alcorão, etc.) está a verdade definitiva,
infalível e sagrada. É mesmo?
Sem fazermos alusões aos demais
livros sagrados que grassam pelo mundo (e todos merecedores de igual respeito e
credibilidade), este surto de nascimento de templos - com denominações as mais
estapafúrdias - está baseado apenas nas diferentes interpretações da palavra sagrada.
Este circo armado para enganar incautos pode ser descrito numa farsa barata na
qual parte-se do (pré) conceito de que no livro sagrado (a palavra de Deus)
está a verdade absoluta, mas - e em toda enrolação tem um mas - os demais líderes religiosos (pastores, bispos, padres,
diáconos, mulahs, profetas, promesseiros, etc.) estão equivocados e apenas a
seita que acabei de criar tem a verdadeira interpretação da palavra sagrada.
Desta forma, vinde a mim os ingênuos de coração, pois deles não será o dinheiro
curto e precário que ganham com o suor de cada dia, em seus ofícios
dificultosos. Formas de arrancar este dinheiro são fáceis de inventar e vão
desde o dízimo, ao comércio livreiro, passando por toda uma produção e venda de
verdadeiros kits onde o kitsch
profano-religioso é abundante. É recomendável, ainda, gravar um CD, contendo
alguns hits melosos, previsíveis e
bem idiotas, com a interpretação de uma popozuda ou de um andrógino destes que
se vendem por qualquer dinheiro. Isso é dinheiro garantido em caixa e o Deus Krioerth, em sua magnificência, necessita de numerário para que os
seus krioerths-piás (seguidores do
primeiro estágio) levem as suas santas e divinas palavras a todos os homens.
Como vemos é um Deus vaidoso, que quer desbancar os outros das paradas de
sucesso. Um Deus que tem a obsessão de provar aos homens, estes serezinhos
insignificantes, que ele existe e deve ser respeitado e até temido.
Neste ponto da exordial seria de bom-tom alguém questionar a
fragilidade da condição existencial humana, principalmente sob os aspectos
simbólico-espirituais. Como a raça humana, após uma caminhada que varou
séculos, chegou a tal ponto de obscurantismo?
Nas sociedades primitivas, onde o drama humano era a sobrevivência
física dos indivíduos contra as intempéries e a fome, todos indistintamente
tinham que prover a subsistência. Na falta de acumulação de riquezas ou outros
“valores” abstratos, cada pessoa tinha que trabalhar. Uma vez criado e em
condições físicas completas, a pessoa ia naturalmente tratar de desenvolver as
atividades rudimentares que lhe garantiam a vida, ou seja, trabalhar. Um mundo
que, na falta de valores diferenciados, todos trabalhavam. Num tipo de
sociedade nestes moldes, não teria porque alguém vivesse as custas do
semelhante. A justificativa para a existência de alguém diferente, que não
precisasse trabalhar para sobreviver, só pode ser encontrada no fato de este
alguém ter alguma coisa a oferecer aos demais. Oferecer o quê? Um produto que
só ele é possuidor, um “conhecimento” que só ele tem, uma verdade que só a ele
foi revelada. Neste momento surge o primeiro ser a viver do trabalho alheio,
dando em troca um “conhecimento” aleatório, improvável e autoritário, uma vez
que ao sabor da imaginação e interesses daquele que aufere vantagens do mesmo.
Neste momento foi descoberta e fundada a diferenciação do privilégio que faz
com que um, diferentemente dos demais, não tenha que enfrentar as feras
bravias, as andanças necessárias à coleta dos frutos e a construção do próprio
abrigo. Em troca fornece a manipulação de ter um poder de decifrar os sinais
divinos na água, nos raios, nas vísceras dos animais, nos ossos jogados ao
acaso, ou em qualquer coisa que a imaginação possa inventar. Qualquer
invencionice basta, ante o temor ao desconhecido.Neste exato momento foi
fundado o estatuto da vagabundagem plena, criou-se o nicho que chocaria os
atuais “colarinhos brancos” bem cevados com o produto do trabalho alheio.
É exatamente esta trilha primitiva que tem sido percorrida até os
dias atuais, por todos as religiões e religiosos que já pisaram a face dessa
terra prenhe de místicas e desconhecimentos. A isto se deu nome de fé, e ter fé
é um dos pressupostos do livre-arbítrio. No campo abstrato da fé, sob
argumentos teleológicos, não há muito o que debater, pois com um obtuso e
improvável “Deus quis assim” qualquer
charlatão analfabeto se encafua na sua segurança ilógico-argumentativa, ante
uma platéia que quer, acima de tudo, acreditar. O mundo tem fome de fantasias
que o retira desta vil e perversa realidade que tem livre curso.
Ocorre que no campo prático, no plano material, muito pode ser
criticado e questionado, sem a lengalenga besta da palavra divina, que deve ser
respeitada, reverenciada e temida. Sob os aspectos materiais, sob os efeitos
práticos, sob a intervenção na pura factualidade, podemos questionar as ações
humano-religiosas de qualquer aparato de cunho religioso. Na prática, todos os
que envolveram o povo na mística, se diferenciaram do próprio povo e passaram a
auferir vantagens da mercadoria que comerciavam: a fé. Não existe uma religião
sobre a face da terra que não apresentou este aspecto de exploração material ou
de poder sobre as sociedades onde vicejaram. Modernamente, não existe nenhuma
religião que não interfira no poder político-econômico, não há nenhum de seita
e religião que deixe para o seu Deus, apenas os aspectos abstratos. Temos
sempre a presença de um Deus viciado em mundanismo, excessivamente humanizado,
que castiga, que quer ser reconhecido, que perdoa e que quer se apoderar do
trabalho humano para produzir instrumentos (capelas, templos, sinagogas,
catedrais, etc.) que sirvam para a sua glória. Que Deus é esse que necessita
mostrar aos humanos, uma glória que se reduz a objetos (alguns caríssimos e
suntuosos) de pura materialidade?
As iniqüidades cometidas pelos romanos foram superadas em muito
pelo fantástico poder do catolicismo, que acolheu papas sodomitas, perversos e
criminosos; que instituiu a inquisição onde queimou em vida um contingente
enorme de inocentes em fogueiras públicas. Tudo em nome de um deus
misericordioso. A argumentação cretina para justificar tais aberrações é a de
que isto foram os homens que fizeram e não Cristo. Ora, são os homens que
continuam tocando os negócios (rendosos, pois não?) da santa madre igreja.
Observando as provas históricas de tantos crimes hediondos, qual a margem de
confiança nos homens atuais? Grana e poder, um Vaticano-Estado, rico, com o
Banco Ambrosiano fazendo suas falcatruas, protegendo nazistas e banqueiros
criminosos.
Se no cenário do catolicismo a devastação moral é exemplar, nos
demais ramos do cristianismo a coisa não é menos deprimente e descaradamente
cínica. Para que servem toda estas estruturas caríssimas, além de acoitar os
profissionais da fé? Os diletantes, os verdadeiros pastores de igreja que
tinham seus ofícios, que trabalhavam e, nas horas vagas gastavam o tempo com os
seus ideais, foram raras exceções, que não existem mais. É sobre os seus
cadáveres e suas vidas exemplares que os padres, bispos, papas, pastores, vivem
a sorrelfa, sem ter que enfrentar a fila do desemprego, com a barriga bem
forrada com o dinheiro suado e curto do povo trabalhador. Será que este povo
não tem vergonha de tirar dos miseráveis o pouco que têm, para prover o próprio
sustento, o luxo de suas vidas ou mesmo construir templos para construir
moradias para um Deus, que por definição, é imaterial, já que onisciente e
onipresente? Com que autoridade moral esses vagabundos, reiteradamente sabujos
do poder, interferem na vida material, expropriam o suor dos pobres, em nome de
um ser que não tem nenhuma das necessidades atendidas pela materialidade?
O mesmo papa que pede desculpas, em nome da igreja, pelos crimes
perpetrados contra índios, minorias e mazelas outras, é a mesma figurinha que
conspirou abertamente contra o socialismo e que agora se ressente do descaso
com que é tratado pelo capitalismo (ao qual se aliou) em vias de globalização.
Provavelmente, num futuro difuso, outro papa estará se dirigindo ao mundo
fazendo novas mea-culpas contritas e sinceras. Mas a questão é, como pode uma
instituição que está assentada (teoricamente) nos princípios da bondade para
com o próximo, na tolerância, ter que pedir desculpas por crimes encharcados de
maldades e intolerâncias?
Muitas das novas seitas que brotam como erva daninha pelos
subúrbios e palafitas do mundo, são verdadeiras arapucas, especializadas em
contos-do-vigário espirituais. Falam de dinheiro para Deus, como se este
fizesse compras em supermercados ou mesmo freqüentasse shoppings repletos de
roupas de marca. Tudo sob a total proteção da fria lei. No limite, Deus pode se
expressar como a bondade humana. Necessariamente não é um ser, mas antes um
ideal a ser atingido, e não tem sentido cobrar dízimo ou construir monumentos
para uma idéia-conceito.
Hoje em dia, de forma corriqueira, o que se pode constatar é a
profissionalização dos líderes religiosos que vivem às expensas do povo, tendo
a executar esta tarefa, auxiliares submetidos a um assalariamento mundano.
Mexer com Deus é uma coisa complicada e explorar o próximo,
crédulo e ingênuo, atiçando seus temores secretos, talvez o mais abjeto
trabalho de magarefe, pois que carrascos dos sentimentos humanos.
Ora, se Deus realmente existe (o que não acredito), teria que ser
uma coisa tão incomensurável, que, ao se revelar para alguém, este não teria
mais os sentimentos mesquinhos da humanidade, entre eles, principalmente o
sentimento da riqueza e do poder. O que se vê entre os bastiões da
religiosidade senão enriquecimento e poder?
Como já observamos, não tenhamos dúvidas que a primeira pessoa a
conseguir viver as custas de um trabalho não produtivo, foi o curandeiro, o
místico da tribo."
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