quinta-feira, 9 de maio de 2013

SOL RENTE - In “Sol Rente” – Marcelo Cavalcante



SOL RENTE



A noitinha atura a monotonia e o sem-sabor igaratuenses. Meninos ensaiam brinquedos e, domingueiros, os rapazes espiam as moças à saída da igreja.
Na praça, Martinho da Hora sustém entre as suas, as mãos de Doralice, entre nervoso e embevecido.
– Faz, isso, não, Martinho. Se pai fica sabendo...
– Tem perigo, não. Essa hora, ele não sai de casa nem a poder de muita promessa.
– Mas o povo fala. Esse povo é enxerido e acaba fazendo enredo...
– Tem perigo, não. Vem cá, vamos sentar ali no banco...
De inesperado, no improviso do momento, a aparição do Coronel Valdetário. Ereto, empertigado e sisudo, no tope dos seus setenta e tantos anos de muito rigor e imposições.
Entredentes, o rancor sai contido.
Inquestionado.

– Doralice, já pra casa! Ligeiro!

Mirar atento, sobre Martinho, de despeito e desaprovação. Por sob o silêncio, no íntimo, a decisão desarrazoada, retemperada e final.

Hum! De’stá, bichim, que ‘cê me paga!

No céu, estrelas e melancolia.


*      *      *      *      *


Forjado e empenhado na violência, fruto da brutalidade já no nascedouro, Valdão – José Alisvaldo do Nascimento – fez,  assumiu e recriou uma história ímpar de crimes e desmandos.
Com o pai tropeiro, foi criado desde a mais esmirrada infância, em lombos de jumentos, percorrendo os caminhos duros do sertão.
Da mãe, não se apercebeu que dote lhe ficou, pois que veio a falecer em serviços – arrochamentos e gemidos – de parto dificultoso.
Do pai herdou a frieza e a insensibilidade humanas.
Do meio inóspito aprendeu as lições de dureza que se desdobraram numa força física que não do pai, que era tico de franzinice.
Talvez, deste somatório desabrochou na vida com um caráter em que a fúria por sangue era preponderante e requisitada.
A sua novena de violências, debutou solene e cava em Crateús quando, a meio uma quaresma amena, arrombou as costas do pai com dois tiros de mosquetão, após carão de pequena monta.
Puxou cadeia de ano e meio, mas conseguiu festejar a protuberância dos dezoito aniversários em liberdade, a poder de fuga espetaculosa que deixou rastro de soldados feridos e um comerciante morto-estatelado, com enterro concorrido em campo santo.
A vida espichou-se no espichado dos acontecimentos e Alisvaldo, já e sempre Valdão, feito magarefe em ofício farto, encompridou mais e mais um emaranhado de mortes.
Tomou gosto e daí, sempre com o tino e a ligeireza afiadas para o manuseio das armas, escalou fama de nomeada que o tocaiou com a contingência de alugar o seu ofício a quem não regateasse preço ou opusesse sermões de consciência.
Indiferente aos dramas humanos, Alisvaldo cumpre suas empreitadas com a justeza de todos os erres, vírgulas e sotaques de seus contratos, ordinariamente verbais.
Apalavrado, coisa contada como se consumada na antecipação da confiança.
Bicho arisco, enviesado dos bofes.

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